(Cumprindo o prometido, segue-se o trabalho de Manuel Cavaleiro Ferreira intitulado "O fundamento do Direito", publicado na revista "Acção", de Janeiro de 1933. Era o primeiro número da revista, e o autor acabara de completar 22 anos. Se houver por aí muitos mancebos dessa idade prontos a alinhar prosa deste calibre têm aqui um lugar à vossa espera. Eliminei as anotações de pé de página, para mais fácil leitura.)
Procurando apenas alcançar uma profissão rendosa, há estudantes de direito que só cuidam de saber interpretar bem as leis, manejar fórmulas, combinar conceitos, preparando-se assim para, numa dialética avisada, poderem, em futuras causas, defender indiferentemente um ponto de vista ou o seu contrário.
O direito é para muitos simplesmente um conjunto de preceitos impostos coactivamente pelo Estado, e apanágio dos seus servidores é a sua interpretação e aplicação... habilidosa aos casos correntes. Tirar do direito a norma que convém, atribuindo àquele o conteúdo mais adequado aos próprios interesses, como se ele fosse vazio de conteúdo seu, é a única finalidade do rábula cujo “espírito” importa destruir para dignificação das profissões forenses. É este espírito o gerador do desdém que hoje cobre a ciência do direito e os juristas, é ele a causa do humilhador sorriso dos que não tendo a alma rígida de Catão para condenar, encontram na própria elasticidade de consciência suficiente indulgência para perdoar os expedientes, os sofismas de que julgam formada toda a vida jurídica, como se fossem “verduras” duma profissão agarotada. Compete a todos os que a ela se dedicam protestar contra um tal conceito. Devemos ter orgulho da nossa profissão; mas orgulho sincero, o qual pressupõe o conhecimento do seu valor.
O direito não se reduz ao formalismo dos seus conceitos, das suas categorias, das suas classificações e teorias, nem mesmo às suas fontes formais; não se reduz tão pouco à vontade incluída nestas fontes formais, à vontade do legislador (lato sensu). Essas mesmas fontes são também processos de ordem técnica, são o lado artificial do direito, de carácter principalmente voluntarista, mas não são o próprio direito. São as vestes que o cobrem, indispensáveis para lhe dar a precisão exigida pelo seu carácter imperativo e necessárias para a organização duma coacção eficaz. Isto é, a aparelhagem técnica assegura ao direito a sua praticabilidade.
Mas se o formalismo visa somente a “realização” do direito, e não se justifica nem sustenta a si mesmo, onde encontrar a razão explicativa da existência e evolução do direito, o “segredo da sua vida”, e mais ainda o seu fundamento?
São numerosos os escritores que na vida social vêem a génese do direito. Já a escola histórica o considerava um produto das condições históricas, revelado pela consciência do povo. Durkheim lançando as bases da escola sociológica vê na sociedade um ente psíquico, distinto dos seus componentes, e portanto gerador de factos sociais, que a ele se ligam como o efeito à causa. Entre esses factos está o direito. E querendo atribuir à moral e ao direito a força obrigatória que não resulta da mera constatação dos factos vai tão longe no seu misticismo que diviniza a sociedade. A Divindade é um símbolo da sociedade; esta exige racionalmente dos indivíduos a mesma deferência que a Deus tributam os crentes.
Ora a concepção da sociedade como entidade independente dos seus membros componentes é pura fantasmagoria... E conseguintemente a consciência social - pretensa base do direito - que tem por pressuposto a unidade psíquica da sociedade, uma criação imaginativa absolutamente irreal. É certo que a sociedade não é simplesmente a soma dos indivíduos que a compõem. As psiques individuais agregadas influenciam-se reciprocamente e o seu todo apresenta uma certa unidade. Mas é uma unidade de coordenação, uma maneira de ser dos indivíduos e não um ente diverso destes. Numa palavra, a sociedade não é uma mera justaposição de indivíduos, mas também não é um organismo; é uma organização.
Destruída a noção de consciência social, Duguit dá por fundamento ao direito o conjunto das consciências individuais. O estado especial destas consciências, que gera o direito, tem por sua vez a sua causa em dois sentimentos: o sentimento de interdependência, e o sentimento da justiça. Mas estes sentimentos são somente dois factos, sem qualquer conteúdo objectivo. O seu conteúdo é totalmente empírico, subjectivo. Assim considerado, o sistema de Duguit se nos mostra a importância da opinião pública na elaboração do direito não nos dá o fundamento deste. Não nos fornece o critério de aferição do valor dessa mesma opinião pública; as bases do direito são, por isso, instáveis e movediças. A consciência social (no sentido de soma das consciências individuais) ou a opinião pública, é simplesmente a resultante duma luta - é o predomínio duma opinião, duma ideia. É a opinião mais forte. Ou seja: o direito é a força.
O positivismo jurídico ainda mais claramente considera a força como sendo o próprio direito. A vontade dos governantes é o direito, e eles são os governantes porque são os mais fortes. É certo que essa vontade não é arbitrária; tem de ceder ante as demais forças sociais. E da luta permanente entre interesses, paixões e ideias adversas resulta a lei. Esta é um equilíbrio mecânico entre várias forças. Nem importa que entre essas forças se contem as que têm carácter moral, ideal, e religioso, como admitem Ripert e Bunge, porque a noção de moral, como todas as noções metafísicas, é para o positivismo de carácter subjectivo.
Simples opiniões que variam de indivíduo para indivíduo.
Procurar o direito na vida social é deixar aos factos a função de se regularem a si mesmos. As paixões, os interesses, tudo o que o direito precisamente devia evitar, entregue a si mesmo, só encontra uma barreira na luta com interesses, com paixões adversas. A mecânica das forças traçaria assim a linha da evolução jurídica.
…Sem do direito natural não há possibilidade de encontrar um princípio de ordem, uma finalidade em vista da qual se realize a organização da vida social.
Todas as correntes que ao de leve criticamos excluem a metafísica. São, filosoficamente, positivistas. E «o debate que o positivismo levanta concentra-se nesta proposição essencial: o sensível encerra toda a esfera do cognoscível; o homem por sua própria natureza ignora o que não é da ordem empírica”. Daí, a negação de qualquer valor absoluto no direito. Mas, a afirmação da impotência da razão humana para se elevar acima do relativismo dos fenómenos, está longe de ser verdadeira e os mesmos que a formulam a contrariam no seu labor científico. Certamente, na ciência jurídica, só devemos servir-nos da observação e da razão; mas demos à razão o que lhe pertence; não é lícito diminuir a sua esfera de acção.
Ora da observação atenta dos actos humanos induz-se a existência duma predisposição do homem para agir de certo modo. É necessária, contudo, uma observação prudente e principalmente um raciocínio lúcido para pôr de parte os actos que têm a sua origem em inclinações, artificialmente criadas por causas externas, pelas paixões, pela imitação, pelo hábito, que é como que uma segunda natureza. E assim se corrobora a existência de inclinações naturais que são a revelação da nossa natureza comum. Mas, uma natureza com propriedades estáveis e universais tem, por certo, uma finalidade. A sua estabilidade ou é devida ao acaso ou só num fim pode ter justificação. O conhecimento perfeito da natureza implica, portanto, o conhecimento do seu fim. Em todos os domínios governados pela necessidade, o seu fim realiza-se forçosamente em obediência ao plano divino da criação. Na natureza humana, porém, domina a liberdade; o homem é chamado a participar no governo de si mesmo. É fisicamente livre de seguir a sua natureza, de conseguir a sua perfeição. O homem deve seguir o caminho que a natureza lhe indica; mas a lei natural para ele somente se reveste duma necessidade moral. Os preceitos da lei natural, sendo a tradução em regras normativas das inclinações naturais, são por isso mesmo instintivos, sem deixarem de ser racionais, porque a razão segue a própria natureza. O seu conhecimento vem depois, pela reflexão sobre as próprias inclinações. É governando as nossas inclinações, diz G. Renard, que a razão toma consciência de si mesma. Esses princípios correspondentes às várias tendências do homem são universais e imutáveis e de todos conhecidos. Podem reduzir-se a um só: bonum est faciendum. Esta expressão não é, porém, uma fórmula desprovida de conteúdo material, porque a razão prática considera “bem” o que é conforme àquelas tendências naturais nos diversos campos de actividade humana.
As deduções dos primeiros princípios, como lhes chama S. Tomás, perdem gradualmente a mutabilidade e universalidade destes, à medida que vão sendo aplicadas a campos de acção mais restritos. Os princípios do direito natural dão-nos uma orientação, uma finalidade na regulamentação das relações sociais, e essa finalidade encontra-se imanente em toda a ordem jurídica, em todas as normas. Mas mais nada.
A vontade do legislador, consoante o direito natural perde a sua precisão na sua aplicação a matérias cada vez mais concretas, adquire maior liberdade, para suprir essa mesma falta de precisão.
Não devemos, portanto, pedir ao direito natural o que ele nos não pode dar: uma regulamentação detalhada das relações sociais. Foi esse o erro dos jusnaturalistas dos secs. XVI a XVIII que pretenderam deduzir um sistema completo de normas da natureza humana.
Não pensaram também que ao lado do indivíduo, cuja natureza é social, existe a sociedade, que é precisamente a coordenação dos interesses dos indivíduos e dos grupos num interesse mais vasto, no bem comum que constitui o objectivo do direito.
O elemento moral do direito - ou seja o direito natural - não é todo o direito.
Primeiramente, são, em regra, só as normas de moral social que entram na elaboração jurídica, porque assim o exige o próprio fim da organização jurídica, e ainda a utilização dessas normas está condicionada pelas possibilidades dos meios de que se serve a técnica do direito.
E depois os princípios do direito natural, gerais e indeterminados, só se concretizam na sua aplicação às condições diversas e variáveis da sociedade a que se destinam. Essa fusão do elemento moral com o elemento económico ou experimental com base no bem comum dá-nos o plano da elaboração jurídica. É função do legislador o sacrificar um ou outro elemento, segundo as circunstâncias e tendo sempre em vista o bem comum.
É pouco o que nos dá o direito natural? É o bastante para fundar solidamente o direito positivo. O direito natural não é um ideal em relação ao direito positivo. É a sua base. Está no seu ponto de partida, e não na sua meta, o que não quer dizer que não seja um progresso da ordem jurídica, o predomínio cada vez maior do elemento moral, nos elementos constitutivos do bem comum.
Não é, pois, muda a natureza quanto à orientação que devemos dar à nossa conduta. A justiça (virtude fundamental da moral social) não se reduz a uma convenção, não é uma palavra vã, como Ovídio pretendia, seguindo a escola de Epicuro:
Nec natura potest justum scernere iniquum.
É uma realidade. E a primeira maneira de a servir é defender a sua existência, é colocá-la acima do indivíduo e do Estado, da Liberdade e da Autoridade, como princípio superior da organização social.
M. CAVALEIRO DE FERREIRA