E o mundo? Que rumo tomará esse monstro de complexidade e de diversidade, que rosna em todos os tons a vanglória de suas conquistas, para logo, em todos os timbres gemer as misérias das mesmíssimas glórias; e o mundo? o mundo?
Lembro-me da visita que fiz a Nelson Rodrigues, recém-operado e ainda mergulhado nos abismos da semiconsciência. Quando, afinal, vencidas as reservas e proibições médicas consegui entrar no pequeno quarto onde Nelson me apareceu numa majestosa cátedra de dor toda cercada pelos fios e aparelhos luminosos da ciência. Nelson estava majestosamente alheio a tudo. De repente, por uma fresta acaso acesa na consciência, viu-me e precipitou-se para mim com um rugido que a custo estivera represado naquela grande alma tão apaixonadamente interessada: - Corção! E o mundo? E o mundo?
Tracei no ar um gesto largo e rotativo para tranqüilizá-lo: o mundo continuava seu ofício de girar.
Carinhosamente expulso pelo médico e pelas enfermeiras, vi o Nelson voltar às trevas protetoras da inconsciência enquanto, pelos corredores do edifício, voltava eu ao mundo.
Hoje, depois de uma semana a depressão gripal e de vertigens de natural cansaço de tanto girar com os que giram, retomei consciência da cátedra que me oferecem nesta bela página do GLOBO, de onde devo atender às interrogações vindas de todo o mundo e estampadas, neste ou naquele estilo, em todas as páginas dos jornais.
Parece-me que todas as inquietações convergem nesta: "Aonde vamos?"
Na semana passada, a contemplação dos mistérios da Paixão e da Cruz nos levaram a ponderar que deve estar no supremo ponto do combate e do ensinamento de Jesus o supremo critério para nosso pobre testemunho. Numa escalada em que Jesus e os doze, depois do drama da Ceia, sobem ao jardim das oliveiras há uma inimaginável ascensão espiritual. Quando dissemos que começa a Paixão no momento em que, feitos todos os preparativos, Nosso Senhor diz aos doze: "Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa", estávamos longe de imaginar os degraus de uma imensa e divina dor a serem galgados em poucas horas. E agora, em vez da mesa preparada e até dir-se-ia festiva, vemos o Senhor prostrado na terra, tomado de angústia, a suplicar "Pai afasta se possível de mim este cálice - mas que Tua Vontade Seja Feita e Não a Minha" (Mc. XIV, 37 de memória). E aí está a primeira lição: obediência ao Pai até a morte, e morte de cruz.
Todas as hesitações, todas as dúvidas, todos os cansaços, todos os medos se resolvem diante desta suprema obediência ao Pai.
O leitor dirá que repito frases convencionais, e perguntará como é que nós podemos saber qual é a vontade de Deus. Respondo dizendo que efetivamente repito o que com a Igreja aprendi, e dou graças a Deus de não ter sido vã a atenção que prestei à Sagrada Doutrina. Agora desdobro em duas a resposta ao leitor ávido de uma solução para o seu caso. Em primeiro lugar temos a ciência geral da vontade de Deus expressa nos mandamentos e desenvolvidos nas obras dos doutores da Igreja. Tudo isto se estuda e se aprende desde que inicialmente se escolha a graça que nos leva a amar a vontade de Deus. Para ouvir a vontade de Deus nos casos particulares é preciso ter a alma preparada pela mortificação, pela humildade e pelo silêncio interior. Isto também se aprende e se exercita se os admiráveis exemplos dos santos nos são oferecidos pela Igreja para que esses exemplos nos aproximem mais dos exemplos de Jesus.
E agora, neste ponto, marcado com uma cruz, ponderemos o rico paradoxo do mistério da redenção. Desde os preparativos da Ceia observamos que Jesus prepara e conduz sua Paixão mais como quem faz uma obra do que como quem se submete aos acontecimentos. Voltemos ao jardim das oliveiras onde deixamos Jesus prostrado, e depois a dizer com tristeza infinita: - "Não pudeste rezar uma hora comigo!"
Quando porém os passos da multidão armada de varapaus e seguida de soldados romanos, a atitude de Jesus tem tão visível força e majestade que derruba por terra os primeiros homens da corte. E quando pergunta: "quem procurais?" e sobretudo quando responde tranqüilamente: - "Sou eu...", torna-se para nós bem clara - na Fé - o desenvolvimento da cena sacerdotal: Jesus não é preso, Jesus se entrega, se oferece ao Pai.
Mas é diante do sinédrio reunido para julgar Jesus que a obra de nossa salvação, trabalhada por Nosso Senhor, ganha uma concentração inimaginável. Enquanto juízes e testemunhas formulavam acusações diversas e até incoerentes, Jesus calava-se como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ou como se sua vida não estivesse nas mãos daqueles homens. Em outras circunstâncias, análogas diante de Heródes (Luc. XXIII, 9) e de Pilatos (Mc. XV, 5) Jesus calou-se. Quando porém no Sinédrio o Sumo Sacerdote, admirado de seu silêncio, dirigiu-lhe a pergunta que o mataria - "És tu o Cristo?" - Jesus respondeu com a única resposta que o Pai esperava dele, sabendo que nesta resposta concentrava o sacrifício em razão do qual o Verbo Divino se encarnara para a salvação eterna dos homens que, acima de todas as coisas do mundo, tivessem sede daquele Sangue. Eis a resposta de Jesus-Sacerdote que oferece ao Pai Jesus-Vítima: "Eu o sou". "E haveis de ver o Filho do Homem sentado à direita do Pai vir sobre as nuvens".
A continuação é conhecida: O Sumo Sacerdote rasga as vestes. Jesus vai de Heródes para Pilatos. O povo prefere Barrabás. E Jesus é crucificado exatamente por ser o Filho de Deus Encarnado para morrer na cruz por nossa salvação.
Da casa tranqüila de Betania (Luc. X, 42) ao tumultuoso ambiente do Sinédrio, e daí ao Calvário, traça-se a límpida linha do supremo critério com que queremos na terra, no turbilhão dos múltiplos cuidados temporais, nos mantermos fiéis ao único necessário e à razão central do sacrifício de Jesus. Blasfemaremos sim, quando reunidos em sínodos ou concílios dissermos que ali estamos em nome de Jesus Cristo para fins e cuidados "prevalentemente temporais". Ou pecaremos por omissão se, diante de tais declarações, não dissermos: "anathema sit".
Gustavo Corção
(O GLOBO Quinta-feira, 22/4/76)