Perplexidades sobre o liberalismo autóctone
É observável também uma forte ligação afectiva, em que o factor emocional se junta às convicções ideológicas (sendo por vezes difícil distinguir a ordem dos factores e saber se foi a filia que trouxe as convicções ou se foram estas que a trouxeram a ela).
Mas o facto é notório. Por exemplo, se percorrermos a blogosfera ou genericamente a opinião publicada constata-se que os entusiastas do liberalismo entre nós são também em regra apaixonados defensores da política externa americana, aliás de um modo que os afasta flagrantemente das posições dos seus homólogos libertarianos, que nos respectivos países são críticos e opositores das orientações dela.
Este pormenor parece-me significativo de uma desconformidade que me parece inegável entre o que são as posições concretamente propugnadas pelos gladiadores do liberalismo indígena e a realidade das imagens para que remetem, e que aparentemente seriam as suas referências.
Vejam-se as posições tomadas quanto ao papel da religião na sociedade. A maioria (não todos) dos militantes do liberalismo luso alinham por um entendimento radical do laicismo, da separação da igreja e do estado, que os leva a enfileirar com as correntes jacobinas, ou abertamente ateístas, em qualquer polémica que surja a envolver a religião e a sociedade. Não querem crucifixos nas escolas, nem nos hospitais, nem em sítios ou organismos públicos – e nenhum reconhecimento oficial em relação à Igreja, nem a nível protocolar. Cruzes, nesta perspectiva, só nos cemitérios, e até ver.
Porém, as sociedades a que se reportam como modelos a seguir são fortemente marcadas pela presença da religião e dos valores religiosos. Em nenhumas outras da nossa área civilizacional se verifica tanto essa presença. Em Inglaterra o chefe de estado é também chefe da Igreja nacional. Existe portanto religião oficial, caso notável no hemisfério em referência. E a presença da religião impregna necessariamente toda a vida pública, patenteia-se em qualquer acto oficial ou em qualquer ocasião solene.
Na América, encontra-se desde o princípio até aos nossos dias uma sociedade ainda mais fortemente marcada pelo factor religioso. Os presidentes juram sobre a Bíblia, e dirigem orações em público. Qualquer outro titular de cargo oficial segue a mesma prática. Essa é a prática corrente na vida pública. Em nenhum país do hemisfério ocidental a religião é tão reconhecida como elemento essencial da vida colectiva, em nenhum sítio vejo invocar tanto a Deus (creio sinceramente que muitas vezes em vão).
O que levará os nossos tão ardentes partidários das sociedades anglo-saxónicas a fazer derivar das suas teses liberais propostas tão opostas ao que é praticado nos seus modelos de eleição?
Também em nenhumas outras sociedades do nosso arco civilizacional são levados tão a sério os valores grupais. Os rituais de identificação colectiva, o culto das bandeiras, o respeito e a veneração pelas datas, heróis e acontecimentos que definem a memória do todo e dão sentido ao sentimento de unidade de destino. O “my country, right or wrong” é ali vivido autenticamente como expressão da vinculação comunitária.
Escusado será dizer como tais práticas são estranhas e até risíveis para a generalidade dos liberais domésticos. Nem pátrias, nem hinos, nem bandeiras lhes dizem nada. Geralmente proclamam que só o indivíduo existe, e que desconhecem a existência de categorias sociológicas em que se pretenderia enquadrá-lo. Nada há para além dos indivíduos, das suas vontades e interesses.
O que levará os nossos liberais domésticos a concluir internamente de modo tão contrário à realidade dos exemplos históricos que invocam?
Estes exemplos poderiam prolongar-se.
Basta reparar que a transporem para o Reino Unido o assanhado republicanismo que afecta bom número deles os nossos liberais clássicos num instante viravam de pernas para o ar uma construção política de muitos séculos – e destruíam o Reino Unido. Ou que a viver-se nas Ilhas Britânicas ou na Norte América um tão ostensivo desprezo pelas tradições e pelas instituições, encaradas as primeiras como peias limitativas da livre expressão das vontades e as segundas como torpe consagração de suspeitos corporativismos, a vida dessas sociedades deixaria de ser aquilo que realmente é (na verdade caracterizada pelo generalizado enquadramento dos indivíduos e dos interesses segundo as suas afinidades morais ou materiais, com uma lógica muito mais corporativista que individualista).
Não pretendo resolver nenhum mistério, mas desconfio seriamente que não poucas vezes o liberalismo exibido e proclamado não ultrapassa o plano das fantasias ideológicas mal assimiladas.
Manuel Azinhal
manuel.azinhal@gmail.com