quarta-feira, dezembro 06, 2006

Recordação de Montes Claros

Quem no Alto da Praça se encontrar deve procurar a saída de Borba para Rio de Moinhos. A caminhada começa por entre o casario da vila, que foi crescendo na direcção do que pomposamente se chama Serra de Borba, umas modestas e suaves colinas que separam esta povoação do vale onde corre a estrada de Estremoz a Bencatel. No vale, mais afastado, fica também Rio de Moinhos, hoje conhecida pelos queijos, e outrora, como ficou no nome, pelos moinhos. No vale nasce também o Lucefecit, que dali abre curso rumo ao Guadiana, por terras de Alandroal e Terena. Para além do vale, são os contrafortes da Serra d'Ossa, este Verão especialmente esturricada em toda essa faceira. Pois como dizia sai-se de Borba, por caminho antigo agora beneficiado de alcatrão, ainda ladeado por muros que atestam a vetusta idade. A escassa centenas de metros passa-se junto ao portão da Quinta do Bosque, que uma espreitadela rápida denuncia na sua frescura sintrense, arvoredo de herança fradesca a proteger o sossego da fachada.
Se virem por ali um cavalheiro idoso, de porte senhoril um tanto fatigado, a passear uns canídeos de ar cúmplice e matreiro, como quem passeia o dono, não há que enganar: é o D. Vicente da Câmara. Dom Vicente é o fidalgo do lugar; o príncipe consorte que com o casamento acedeu às doçuras do velho convento capucho.
Prossiga-se dali a marcha, ainda a subir, serpenteando até alcançar o cume das tais colinas, sempre por Terras de Mármore. Já a descer, depara-se com o pequeno aglomerado que a placa diz chamar-se Barro Branco. Suspenda-se então a marcha para Rio de Moinhos, e fiquemos aqui, na pequena povoação. Suba-se, por azinhagas enviesadas, ao ponto mais alto de Barro Branco. Dali se observa em extensão o ondear dos terrenos que se estendem até à outra margem, a alta barreira da Serra d'Ossa. O mesmo viu D. António Luís de Meneses, que num mês de Junho já distante ali parou, por sobre os campos onde as suas e nossas tropas se enfrentavam com o exército que de Espanha tinha vindo.
A refrega de Montes Claros foi mais abaixo, em campos onde agora as vinhas parecem estar a ganhar (grandes vinhos, regados com sangue de heróis). Junto à estrada que atravessa o vale, à direita de quem siga de Estremoz para Bencatel, ficou um padrão a assinalar o dia, para lembrar que nessa quarta-feira e naquele “sítio de Montes Claros, D. António Luís de Menezes, Marquês de Marialva, Capitão General do Alentejo, em batalha singular por espaço de nove horas, que começaram às 9 horas da manhã até ás seis da tarde, matou, rompeu, desbaratou e venceu o exército castelhano, que o Marquês de Caracena, Capitão General da Estremadura governava, o qual deixou na campanha um grande número de prisioneiros e muitos cabos, toda a artilharia, carriagem, e a Vila Viçosa livre do sítio que lhe tinha posto”. Prosseguindo nessa estradinha ainda se encontra, do mesmo lado direito, o que foi o convento e Igreja de Nossa Senhora da Luz de Montes Claros, de claros traços joaninos. Mas voltemos a Barro Branco, que isso fica já no caminho de Bencatel.
Do cimo do Barro Branco não se avista o padrão de Montes Claros; avistam-se as distâncias por onde a batalha se estendeu, durante as tais nove horas em que os soldados de D. Luís de Benevides se bateram com as forças portuguesas do Capitão-General do Alentejo, até à derrota que aliviou o sufoco de Vila Viçosa, e do reino. O Senhor D. António Luís de Menezes gostou daquele sítio do Barro Branco, onde fez o trato com a Senhora da Vitória. E ali mandou construir em cumprimento da promessa a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, para que todos os dias ali fosse celebrada missa a agradecer a graça. Junto à cerca do pequeno templo encontrei um campo de jogos, com um improvisado palco de tábuas tão decrépito como as balizas, e esplanada de canas e folhas de palma, a evidenciar utilização para bailarico de aldeia. Uns vestígios de carvão em fogareiros de churrasco compunham o quadro folclórico. Passando além desses restos de arraial, dando a volta à Igreja, encontra-se o que pode chamar-se uma cerca, pois que de espaço murado se trata, rodeando a capela, mas que desse lado mais corresponde a uma horta, onde um viçoso faval se ergue em bem cuidadas leiras. Honra ao mimoso hortelão, que não sei quem seja mas deve ser certamente o responsável pelo aspecto do conjunto no sector a seu cargo, que desse modo não aparenta ruína ou desleixo. Pois prosseguindo, entre as alas perfiladas das favas fica um corredor central, uma espécie de passadeira em impecável linha recta, que sem ser vermelha ostenta a honesta dignidade da terra. E conduz-nos até junto ao muro, a duas ou três dezenas de metros, onde se levanta orgulhosa e branca uma larga placa de mármore, com extensa inscrição em caracteres negros. Muito acima do humilde muro de pedra escura, a clara e elevada memória explica-nos em linguagem directa, quase intimista, como foi que D. António Luís de Menezes achando-se ali se entregou a Nossa Senhora da Vitória, e a ela confiou a sorte das nossas armas; e adianta como cumpriu a devoção de erguer no local a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, e o culto que deseja que lhe seja prestado, e até a lição que pretende deixar aos vindouros – sobre os sofrimentos e os sacrifícios de então, para que sirvam de ensinamento. Poucos discursos haverá mais comovedores e sinceros. Perfilamo-nos ali, frente à imponente memória de Montes Claros e do Senhor Marquês de Marialva, num silencioso quintalão de um modesto templo rural numa aldeia esquecida, só com o testemunho calado das favas, alinhadas atrás, em sentido, orgulhosas ao sol de Inverno.
Que a Pátria se reencontre um dia aqui e em toda a parte, com Nossa Senhora da Vitória de Montes Claros.

4 Comments:

At 12:01 da tarde, Blogger Francisco Múrias said...

Que bonito que isso é.

 
At 4:09 da manhã, Blogger Marcos Pinho de Escobar said...

Constraste abismal com os tempos que correm. Cada dia devia-se recordar um feito e um herói - e a História Pátria é nisso pródiga.
Excelente recordação!

 
At 12:09 da tarde, Blogger JSM said...

Grande recordação que confesso me emocionou e tão bem descreve o que vale a pena guardar na memória!
Sem querer, vi-me transportado a um passado recente em Casa de Ataídes a outro mais longínquo das minhas próprias raízes.
Obrigado.

 
At 9:13 da manhã, Blogger Joaquim Trincheiras said...

Imperdoável não ter passado por aqui mas não tem sido fácil estar ligado... Agradeço a referência ao Alto da Praça e o texto que descreve na perfeição esta nossa zona que também tem história.
Um grande abraço desde Borba.

 

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