Coisas do arco da velha-II
O texto em questão deixou-me intrigado e perplexo.
Para quem o saiba ler, todo ele é um exercício de memória selectiva... cheio de esquecimentos muito bem lembrados.
Como exemplo, o leitor vulgar fica a saber que o pai de José Miguel Júdice lhe morreu quando ele tinha três anos – e que foi um “membro clandestino do partido comunista”. Mas nunca saberá que ele não morreu nessa condição, e pelo contrário dedicou os últimos anos da sua vida a combater o mal que tinha conhecido por dentro.
O filho dirá que não vinha a propósito falar do António Júdice militante anticomunista. E que aliás faz alusão a isso ao contar como Cunhal, cavalheiro, lhe dirigiu elogios à mãe para evitar falar-lhe do pai.
Mas fica a impressão que não será muito respeitoso para com o falecido transmitir dele uma caracterização que ele em vida energicamente repudiou.
Ou que poderá ser ainda o medo ao anátema, à excomunhão, lançadas ao tempo sobre as posições e a pessoa de António Júdice exactamente pelas forças a quem José Miguel faz delicadamente cócegas com o texto em referência.
Ou quiçá um piscar de olho, um pedido de indulgência, dirigido precisamente àqueles que não pouparam a António Júdice nenhum ataque, nenhuma calúnia .. nada!
Ou talvez a construção de uma biografia, a criação de imagem, mais conformes com os padrões da ortodoxia antifascista, indispensável a quem sonha com outros voos. O pai ao serviço do filho...
Seja como for, a omissão converge com outras omissões notórias, em outras ocasiões, quanto à trajectória pessoal do autor. Ora a omissão calculista, o retocar interessado, da biografia paterna ou da própria, com vista a expurgar destas o que nelas choca com o politicamente correcto, o conjunto de ideias aceites pelo sistema dominante, de forma a tornar-se mais frequentável para este, não parece compatível com o jovem idealista que marcava presença na academia coimbrã no começo dos anos 70 – e que radicalmente se insurgia contra esse sistema.
Daí a perplexidade.
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