Ensaio sobre a propriedade
Esta contou-me um companheiro transmontano, exímio caçador de perdizes, grande conversador e politicamente conservador, azul até à medula – por devoção à monarquia e ao Futebol Clube do Porto - num dia em que explorávamos as paisagens do Douro. Como a contou assim a deixo.
Havia lá em cima dois pobres lavradores, desde sempre vizinhos e amigos.
Um tinha duas vacas, e o outro tinha dois burros.
Um dia, veio a revolução quebrar o ritmo inalterável daquela existência sempre igual.
Aquele que tinha duas vacas, mas não tinha nenhum burro, ouviu a pregação socialista, e ficou sensibilizado pelas doutrinas sobre a propriedade, a igualdade, a justa repartição da riqueza, etc. - e tirou as suas ilacções.
Dirigiu-se então ao amigo que tinha dois burros, e expôs o problema: agora vinha aí o socialismo, a igualdade, quem tinha mais devia repartir por quem não tinha – em suma, em adesão às novas ideias impunha-se que o amigo, que tinha dois burros, lhe desse um deles, que bastante jeito lhe fazia, e assim ficariam conformes com a doutrina consagrada na constituição.
O outro ouviu, e, bem ou mal convencido, ou apenas esmagado pelo brilho da nova ideologia, acedeu – e deu-lhe um dos burros, em homenagem ao socialismo.
O pior foi depois, quando contou à patroa. Ouviu das boas, que o sentido prático feminino não permitia a esta embarcar nas mesmas cantigas. E terminou a mulher o raspanete com a saída lógica: o nosso amigo tem duas vacas, e nós não temos nenhuma; trata pois de ir falar com ele, e resolver o problema; a nós também fazia muito jeito ter uma vaquinha ...
Ao infeliz pareceu acertada a ideia, e lá foi novamente falar com o amigo. Pôs a questão como a mulher o ensinara, e apelou ao amigo: tem duas vacas, eu não tenho nenhuma, impõe-se assegurar a igualdade – se me desse uma das vaquinhas, como eu já lhe dei um dos meus burros...
Aqui chegados, o primeiro sobressaltou-se – e renegou do socialismo.
- Mas o amigo não percebeu? O socialismo é só para os burros ...
Mais ou menos o mesmo demonstrava o Afonso Botelho, na sua novela “Como o senhor Jacob enganou o socialismo”, que devo ter para aí perdida em qualquer canto.
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