quinta-feira, agosto 21, 2003

Necrologia

Solene, farda número um, olha-me da página do jornal, por entre cruzes negras, em muda despedida. Missa do sétimo dia, Igreja Matriz de Arraiolos...
O Coelho! O próprio, ali, entre os mortos...
Suspendo a vida, no anúncio fúnebre.
Era meu amigo há trinta e tantos anos... desde que ele, miúdo ainda, tinha vindo das brenhas natais (era de São Gregório) para estudar no liceu. Encolhido, ao princípio, desabrochou, depois, num adolescente esfuziante, de riso farto e laracha fácil. Estou a vê-lo na Câmara, com a comissão de finalistas, à procura do Presidente, com quem era preciso falar. Perante a atrapalhação dos restantes, gritava ele nos corredores para os funcionários municipais: “mas onde é que está o nosso preto vermelho?”
O Presidente era já então Abílio Fernandes, como estarão a perceber. Alarvidades dos dezoito anos.
Mas o Coelho não era só a brincadeira e a exuberância que exibia. Era, e aqui chegados ficava repentinamente sério, um homem de convicções. Essa sua faceta era mais ignorada, sobretudo pelos que só o conheceram desde que a carreira militar lhe tinha imposto a reserva e a contenção. Mas nunca, desencantado embora, o tempo lhe corroeu as certezas. O Coelho era camarada – não dos outros, mas dos meus...
Nestes últimos anos encontrá-mo-nos aqui e ali, ao sabor do acaso, e logo regressava a velha cumplicidade, com um sorriso aberto.
A nossa amizade estreitou-se na fase que se seguiu à abrilada, os dois jovens liceais unidos pelo repúdio aos ventos da hora. Foi o tempo de todos os romantismos, o nosso e o dos outros, e nós nesses anos de 1974 e 1975 dávamos tudo no combate contra o rolo compressor da revolução que avançava, em ímpetos de embriaguez colectiva.
Foi época de activismo intenso, com os parcos meios ao alcance de um pequeno grupo juvenil a remar contra a maré.
Mas os muros da cidade, a par dos slogans da revolução, apareciam sempre pintados com outras palavras de ordem (“Guerra do povo aos lacaios de Moscovo!”) e outras siglas (JNR – JUVENTUDE NACIONAL-REVOLUCIONÁRIA).
E nas caixas de correio surgiam, abundantes e regulares, panfletos e comunicados, cascando nas autoridades e nos rumos da revolução. Era o fruto de constante e fervoroso trabalho nocturno, e clandestino (tinha que ser, que era o tempo de... reacção em cadeia!). Tempos heróicos do stencil e do autocuspo!
A vida seguiu o seu curso, e ditou as suas regras. A última vez que conversei com o Coelho creio que foi há alguns meses, no “Trovador”. Falou-me da sua mudança, já que tinha sido colocado em Lisboa no cargo que agora ocupava, deixando de prestar serviço no Quartel-General da Região Militar do Sul. De resto, tudo bem. Para o Coelho, aliás, era assim – estava sempre tudo bem.
Senti como estava longe da exuberância da mocidade, senti que se instalara nele um desprendimento e um cansaço que a vida, e a solidão, por vezes trazem. Mas, confesso, não senti que o sopro da morte o rondasse já tão perto. E afinal ... morreu de “doença prolongada”.
Otro se fue al lucero que en el cielo le esperaba... A meio da vida, e sem aviso prévio.