O eborense Doutor da Mula Ruça
Ao que apresenta prosápia superior às suas habilitações, ou que presume aquilo que não é, chama-se ainda agora habitualmente “doutor da mula ruça”.
Pois bem: a expressão hoje generalizada tem uma origem bem concreta e determinada. A história foi investigada e contada pelo erudito portuense Sousa Viterbo, na inestimável revista “Tradição”, que há mais de cem anos se publicava na notável vila de Serpa (agora também cidade!), e que reuniu um escol de colaboradores como nunca mais voltou a acontecer nestas brenhas transtaganas (mérito do senhor Conde de Ficalho).
Relata o conhecido investigador, arqueólogo e historiador, que na primeira metade do século XVI viveu em Évora a figura que deu origem à popular expressão.
Foi ele António Lopes, eborense de origens humildes e parcos recursos, que a dada altura foi estudar para a cidade espanhola de Alcalá de Henares, então universidade de grande reputação. Por lá se demorou dez anos, alcançando o grau de bacharel em artes e medicina.
Todavia, a falta de meios de sustento obrigou António Lopes a regressar a Évora – sem ter atingido o almejado doutoramento.
Uma vez na sua cidade António Lopes passou a ganhar a vida praticando as suas artes da medicina, como tinha aprendido na Universidade, e ao que parece com êxito, conseguindo granjear a fama e o respeito generalizado, tanto dos pobres da cidade, que tratava gratuitamente, como das pessoas de posição que a ele recorriam. Todavia, havia honras e privilégios que eram exclusivos dos doutores, formados pela Universidade de Lisboa ou reconhecidos pelo monarca, pelo que a falta do título causava evidentes prejuízos ao clínico praticante.
E vai daí o António Lopes, em 1534, requereu ao Rei D. João III que lhe concedesse a desejada qualificação, para poder gozar também das referidas honras e privilégios de doutor. Como agora se diria, pediu o reconhecimento, ou a equiparação ... que não um mero doutoramento honoris causa, como se verá a seguir.
Com efeito, o monarca, considerando os méritos científicos já demonstrados e os relevantes serviços já prestados, despachou o requerimento – mandando que António Lopes fosse devidamente examinado.
O interrogatório aconteceu no dia 19 de Maio de 1534, e foi efectuado por um júri presidido pelo físico-mor Doutor Diogo Lopes, e composto pelos Doutores António e Francisco Mendes e pelo Mestre Francisco Giraldos, servindo ainda de testemunhas o cavaleiro fidalgo Diogo d’Afonseca, o Licenciado Gaspar Ribeiro, físico da rainha, e o boticário Diogo Gomes.
Assim uma espécie de exame do Vasquinho da Anatomia, na “Canção de Lisboa”, não sei se estão a ver. E ao que parece o examinando António Lopes também sabia onde ficava o “mastoideu”, e terá prestado boas provas.
Por carta régia de 23 de Maio de 1534, logo na sequência do exame, foi concedido pelo rei a António Lopes “o grau de Doutor, ou que goze dos privilégios, honras, liberdades, franquezas e excepções de que gozam os doutores que saem por mim feitos ou dos que fazem em a Universidade de Lisboa”.
Deste modo logrou António Lopes conquistar o reconhecimento que lhe faltava, legalizando a situação que detinha de facto. Mas na época em que o exame ocorreu já ele era habitualmente designado como “o físico da mula ruça”, por ser de norma deslocar-se num animal com essas características.
E eis como nasceu a popular expressão, a qual como se conclui não tinha na sua origem qualquer conotação pejorativa.
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