Paulatim, sed firmiter
Nos meus tempos de Liceu Nacional de Évora, e desde muitos anos antes, era ele uma das lendas da casa. Não havia aluno que não conhecesse, e não temesse, o Velho Coruja. Pontificava na sua área de Português e Latim, onde já tinha marcado gerações de estudantes, e as pautas não enganavam quanto às razões do temor: oito, oito, oito, um novezinho a um rapaz em que ele via esperança de salvação, oito, oito, oito, lá vinha um dez a alguém que nas outras estava habituado a ter quinze, oito outra vez....
Poucos, porém, conheciam o nome: o epíteto de Velho Coruja, que o rapazio lhe tinha posto sabe-se lá porque motivos, tinha-se-lhe colado de tal maneira que saía mesmo a quem queria evitá-lo – coisa que o deixava, como agora se diz, à beira de um ataque de nervos. Certa vez a mãe de um colega resolveu telefonar-lhe, para saber novas do rebento, directamente da fonte, e vai daí começou a conversa com um “Sr. Dr. Coruja”... que estragou logo o contacto. A senhora nunca nos tinha ouvido outro nome, e tinha-o como o verdadeiro.
Aqui o Manel, que era curioso, e que sempre foi do contra, simpatizava com a personagem. Fixou que ele se chamava Barros Ferreira, Joaquim José Barros Ferreira, e era transmontano. Mais tarde, quando a confiança o permitiu, passou a manter diálogo com ele, e por vezes até a acompanhá-lo nos seus longos passeios a pé à volta da cidade (conselho médico, que ele seguia escrupulosamente, pendular como um relógio).
Formado no seminário, conservava uma religiosidade profunda, presente em todos os momentos. Rigoroso, levava a peito a tarefa ingente de transmitir às nossas jovens cabeças os rudimentos da Língua, o sentido das palavras, os étimos, as regras... as orações, o estilo, a retórica – bem falar e bem escrever, coisa em que punha todo o seu empenho e em que via a mais alta importância.
Na altura parecia não ter muito êxito, e não era muito popular. Pudera: não havia memória de alguma vez ele se ter atrasado, ou ter concedido um feriado uma vez que fosse... Lembro-me que em certa ocasião uma inusitada agitação e expectativa chegou a dominar a malta: tinha-se sabido, por vias travessas que desconheço quais fossem, que casava uma sobrinha do Coruja, ao que parece em Alcácer do Sal. Dada a sua religiosidade e dedicação à família o Coruja não iria faltar ao casamento. E dada a distância não era possível que ele comparecesse para a nossa aula.
Mas foi: às treze horas e trinta minutos em ponto, quiçá com um atraso de alguns segundos, surge o Coruja, afogueado, com um passo mais apressado que o costume, perante o pasmo da turma reunida à porta da sala, preparada para romper em manifestações de júbilo mal o senhor Francisco desse o segundo toque. E a lição aconteceu, exactamente como nos outros dias ("oh meus amigos, meus amigos, isto assim não pode ser...").
Ainda hoje estou para saber como foi que ele compatibilizou as duas obrigações. O vetusto carocha cinzento em que costumava transportar-se, e o seu respeito pelas normas limitadoras da velocidade, não lhe permitiram de certeza voar entre Alcácer (parece-me que era Alcácer) e Évora. Estou em crer que impôs aos noivos uma hora que lhe permitisse a ele estar presente na cerimónia religiosa e sair dela directamente para o Liceu de Évora, a tempo de não nos faltar com a prelecção.
Confesso hoje que aprendi muito com as exigências do velho mestre. Relembrei, agora, aquilo que encimou esta incursão pelas memórias da adolescência, e que reli há momentos num escrito dele que jazia por acaso entre papelada amontoada e amarelecia. “Paulatim, sed firmiter”.
E por aqui tenciono continuar a blogar – devagar, cautelosamente, mas com firmeza.
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