Sobre a “requalificação urbana” de Évora
Escrevia há quase sessenta anos o Dr. António Bartolomeu Gromicho:
“E não se julgue, o que tem sido erro corrente, e perigoso, que o valor desta cidade sem par se concentra e se confina nos seus numerosos e ricos monumentos. O merecimento extraordinário da cidade reside principalmente no seu conjunto monumental e pitoresco.
O encanto desta formosa urbe está na harmonia de um todo envolvido, ou antes, emoldurado na muralha fernandina.
Se os belos monumentos existentes fossem divorciados, descarnados do ambiente típico e pitoresco que a envolve, ficariam frias peças de museu, quase inexpressivos documentos de épocas remotas.
Mas, com a evocativa teia emaranhada das ruas, donde realça a brancura alvinitente dos prédios; com os cantos e recantos dos largos e praças, onde se descortinam restos de grandezas fidalgas; com os perfis caprichosos das cumiadas dos edifícios, eriçados aqui e além, de chaminés de traço elegante ou solene, emergentes de telhados de múltiplos planos, de beirais debruçados sobre artísticas e variadas molduras, a que não faltam, por vezes, os belos frisos de esgrafitos; com todo este conjunto de maravilha, em suma, os monumentos brilham de espaços a espaços como pontos culminantes, como figuras de realce da beleza sem par que se espraia e surpreende por toda a cidade.
Enganam-se redondamente todos aqueles que supõem com santa ingenuidade que toda a atracção de Évora se localiza nas construções classificadas de monumentos nacionais.
Puro engano! Mais, perigoso engano.
Se amanhã Évora, vítima da sanha destruidora que em época recente lhe roubou tantas preciosidades; se amanhã Évora, em loucura de modernização, voltasse à destruição das suas casas típicas, ou dos seus artísticos pormenores, à pintura ridícula das fachadas dos prédios, e enveredasse pela abertura das ruas e avenidas geométricas, traçadas a régua e ladeadas de prédios janotas, que se encontram em toda a parte, a cidade cairia na banalidade e perderia sem remissão todo o encanto, todo o pitoresco, que são os seus mais valiosos pergaminhos e o mais belo cartaz da cidade, rainha do turismo português.
Para um estrangeiro, que não sinta a força da nossa história e que tenha admirado as majestosas igrejas de Itália, França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, etc., etc., sentiria uma admiração limitada e relativa ao contemplar os nossos belos, sim, mas muito mais modestos monumentos. Maravilha-os, no entanto, este cenário de perspectivas sempre novas, sempre fascinantes, sempre realçadas por um pórtico, uma varanda, uma janela antiga, ou pelo perfil majestoso, ou pela presença imponente de um palácio, de um convento, ou de uma igreja. É, porém, a soma de tudo que é tudo para eles.
E não falo por suposição. Eu que em anos sucessivos fiz de cicerone a muitos visitantes estrangeiros, ouvi-lhes palavras de respeito e certa admiração pelos monumentos, mas de entusiasmo e de emoção por este conjunto de maravilha”.
Aqui fica, à atenção dos nossos “requalificadores” - que eu não diria melhor.
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