sexta-feira, setembro 26, 2003

A Nossa Senhora de Aires

Para replicar ao modernismo de Almada, nada melhor que regressar à simplicidade rústica do povo – que produz arte, às vezes tão moderna quanto eterna.
No tempo em que fui a primeira vez à feira de Aires, no descampado dos arredores de Viana onde o Venerando Arcebispo D. Xavier Botelho de Lima plantou um santuário que imita a Basílica da Estrela (mas onde os sábios Mário de Saa e Leite de Vasconcelos asseguram que havia lugar de culto desde os tempos romanos e pré-romanos), os automóveis ainda eram muito poucos. E as estradas também não eram muitas.
Acontecia por isso que os devotos de toda a vasta área de irradiação do culto à Senhora de Aires, ou os simples feirantes, acorriam de todos os lados em carroças, de burro, a cavalo, ou a pé – conforme as possibilidades de cada um.
Partiam caravanas de Évora, ou da Cuba, ou de Portel ou - imagine-se!- da Moita, bem junto do longínquo Tejo.
Passava-se a noite, ou noites, no caminho, e acampava-se no local, por entre as hortas e quintas que circundavam Viana.
Os lavradores da região não faltavam, dada a sua íntima relação com o culto, desde os primórdios deste.
Era o grande acontecimento que marcava o último fim de semana de Setembro no Alentejo central.
Ia-se fosse para passear, fosse para comprar as sementes para o ano, ou uma sachola, um arado, ou uma botas, ou para cumprir uma promessa, ou deixar um ex-voto de agradecimento pela cura de uma mula.
Nesses anos sessenta generalizou-se a oferta da fotografia dos mancebos que partiam para o Ultramar, para que a Senhora os protegesse, enchendo-se com elas as paredes do interior do Santuário.
Foi assim que conheci a romaria desde a minha mais tenra idade, pela mão de meu avô, que nunca faltava um ano.
No dia da festa a procissão era à volta da igreja, e as cantigas e danças também.
Os grupos de cantadores rivalizavam então em afinar as vozes e acertar o tom no louvor à padroeira, em quadras de ingénua devoção, misturada com uma ou outra malandrice.


A Nossa Senhora de Aires
Está metida num deserto
Em chegando a mocidade
Me parece o céu aberto

Me parece o céu aberto
Com toda a sua gentinha
Fui solteiro vim casado
Foi milagre da santinha

Foi milagre da santinha
Foi milagre que ela fez
Pró ano se Deus quiser
Hei-de lá ir outra vez

A nossa santinha de Aires
É a virgem bela e pura
É a nossa padroeira
Para as horas de amargura

A Nossa Senhora de Aires
Está metida num deserto
Em chegando a mocidade
Me parece o céu aberto.