Quando António Sérgio exaltava o fascismo
Naquele Ocidente dos anos Vinte, desfeitas pela I Grande Guerra as ilusões do velho liberalismo, desgovernados os países pelas classes partidocráticas que se debatiam na confusa podridão dos interesses particulares e das intérminas discussões inúteis, afloravam em toda a parte, com mais ou menos violência, os primeiros focos da subversão comunista. A Alemanha era então olhada, mais do que a Rússia, como o grande condutor da futura revolução marxista, cujo carácter fundamental ainda não fora necessário disfarçar em face das realidades que o contradiziam.
Daí resultaram as reacções do espírito nacional como facto comum a todos os países da Europa.
Em Portugal, onde a velha partidocracia tomara aspectos particularmente desordeiros, verificara-se a primeira reacção com Sidónio Pais, ainda antes do findar da guerra. Era, porém, uma reacção de tipo meramente pessoal. Isto é: tinha por conteúdo a esperança na acção de um só homem, excepcional é certo, mas um só homem, sem um corpo de ideias estruturado, nem uma organização dotada de um projecto de acção e de uma mística, dos quais ele tivesse apenas a alavanca do comando.
Com a morte de Sidónio sucedeu inevitavelmente ficar apenas o Sidonismo, ou seja a fidelidade saudosa dos amigos à memória de uma personalidade ímpar. Fora disso, havia no País forças com virtualidades de intervenção, como o Integralismo Lusitano, mas este ainda na fase de crescimento, com preocupações mais intelectuais de que realização política.
A grande expressão europeia contra a putrefacção da partidocracia e na tentativa de superar a revolução marxista foi o Fascismo italiano. Quando o comunismo afixou depois o epíteto de fascista em todas as escolas de pensamento ou vectores de acção política, económica, social, ou mesmo simplesmente filosóficas, que não fossem marxistas, embora se afastasse do rigor da expressão e da realidade dos factos, prestava homenagem ao vigoroso impulso nacionalista do partido de Mussolini.
Foram muitos, imensos, os que então o aplaudiram. Importa, porém, distinguir o fascismo dos primeiros tempos, no irromper do seu espírito heróico, do fascismo desesperado do fim, encurralado entre as delirantes ambições germânicas e as da coligação capitalista-sovietista dos anos Quarenta.
O insuspeito Edmond Dumesmil, com todo o seu republicanismo, escrevera ao Rapel de 12 de Setembro de 1923:
«Se as ideias democráticas parecem em decadência desde a guerra, é porque os povos experimentados pela dura escola das trincheiras já não se contentam com a carne podre da ideologia.
Os democratas, ou aqueles que tal se crêem, dão o exemplo funesto da inorganização do esforço, da desordem dos métodos, da anarquia das ideias. Eis porque os povos experimentados pela guerra, ou nascidos para a liberdade no seio da paz, e que sentem a necessidade vital de se refazerem ou de se constituir, procuram, por instinto, a ordem pela autoridade.»
Foi por aquela mesma época que António Sérgio escreveu no diário A Pátria, de Nuno Simões, um artigo que veio a ser esquecido, tanto por ele próprio - que esqueceu, coitado, tanta coisa! - como pelos seus companheiros de antifascismo.
Nesse artigo, intitulado Fascismo e Primo-de-Riverismo, comentava ele o golpe de Estado de Primo de Rivera, que pouco antes sacudira a Espanha, estabelecendo uma ditadura que durou mais de seis anos. Era um mau exemplo para a turbulenta democracia portuguesa. Falava-se já muito, entre nós, na necessidade de uma ditadura militar, e o grupo da Seara Nova, alarmado, publicaria em Novembro daquele ano uma carta aberta ao Presidente da República, Teixeira Gomes, recentemente eleito, na qual denunciava o perigo desta ditadura. Um mês depois, diga-se de passagem, António Sérgio era nomeado ministro da Instrucção, lugar onde não conseguiu por sinal aguentar-se mais de dois meses.
Mas voltemos ao artigo de Sérgio, que é do teor seguinte:
"Na Espanha a revolução, uma vez senhora do Estado, decreta a criação do somaten nacional; na Itália, um somaten nacional, espontaneamente organizado nas entranhas do país, faz a revolução; na Itália a revolução tem por símbolo um feixe de varas, que um vínculo uniu, colocando-lhe ao meio a machadinha; na Espanha não houve varas, nem o vínculo para as unir; tão-só o machado, que por sinal é uma espada; na Itália vemos uma árvore que saiu de um germe na terra mãe, onde criou suas raízes, para depois subir, subir, subir, até dar um dia como fruto o governo de Mussolini; na Espanha surge repentinamente um fruto artificial, espetado numa espada, que depois procura lançar para a terra as raízes que não teve; o fruto dita, por decreto, a criação das suas raízes.
Está nisto, supomos nós, a diferença essencial dos dois movimentos, e a imensa inferioridade do espanhol em relação ao italiano.
Em Itália, o movimento foi moral, social, nacional, criado com espírito, com coração, com generosidade, com esto, com fraterna elevação de ideias; houve clara inteligência e sentimento fervorosíssimo. E em Espanha?
Em Itália (por outras palavras) há verdadeira religiosidade, larguíssima nobreza de pensamento. Eis aqui a jura dos 15.000 fascistas de Placença:
"Pelo sangue dos nossos 2.000 mártires, que invocamos como testemunhas e juizes dos nossos actos, nós, os Camisas Negras de Placença, juramos que durante um ano não usaremos em nossas pessoas nenhum oiro, prata, ou quaisquer metais ou pedras preciosas. Trabalharemos fervorosamente sem salário pelo bem da nossa Pátria. Daremos todos os nossos ornamentos supérfluos para um fundo destinado a custear obras que tenham por objecto a bondade, a civilização, a beleza, o melhoramento cívico."
Ideias positivas, clara e concretamente concebidas, atmosfera de generoso e religioso sentimento: tais são as condições de uma reforma criadora. Tudo se facilita quando o movimento político sai das ideias positivas claramente concebidas e dos sentimentos positivos religiosamente generosos; tudo se dificulta se o movimento, ao contrário, começa por ser político, na acepção estreita dessa palavra, feita por políticos profissionais (ou por militares) e ainda mais se é vago nas ideias, e principalmente negativista.
A situação de Primo de Rivera, portanto, é muito menos nítida que a de Mussolini. O movimento de Mussolini sai de um movimento nacional; Primo de Rivera tem de criar, encarrapitado no poder, o movimento donde devia ter saído. Mussolini, tendo sido um socialista, tem a noção dos problemas sociais; Primo de Rivera, um puro militar, anda à procura de quem o ensine.
Por enquanto a tarefa é fácil, à altura da inteligência de um contínuo: verificar se todos os funcionários comparecem; se os há em excesso, substituir vereações por comissões, acusar os políticos de imoralidade, etc.: coisas que exigem coragem, tesoura, força, mas que se podem realizar sem inteligência e sem saber. Em suma: a parte negativa da obra. Útil e louvável, sem dúvida nenhuma, mas fácil e negativa. Ora isto não basta; o pior é que não basta. A Espanha necessita de uma obra positiva e criadora. O problema é se Primo de Rivera, quando a parte negativa estiver pronta, terá já reunido em torno de si aquela porção de pensamento claro, de ideias positivas, de competências técnicas, de sentimento religioso com que contou e com que conta o ditador italiano. Os gentiles de Espanha, por enquanto, parece que não são dos riveristas. Aí vejo eu a dificuldade.
Se volvermos de Espanha os nossos olhos para o problema cá da casa, verificaremos que Primo de Rivera (se me não engano, o que é possível e até provável) se parece com Sidónio Pais, estando arriscado, portanto, a cair no charco de incompetência em que foi resvalando, desde princípio, o Rivera português: Mussolini, porém, não se parece absolutamente nada com o que tem aparecido em Portugal - não dizemos pela sua pessoa, o que para o caso menos importa, mas no movimento de que brotou. Existe (dizem) quem queira fazer por cá o que se fez na Itália e se fez na Espanha. Distingamos. O que se fez na Espanha, creio eu, seria possível em Portugal, afora os óbices acidentais; o que se fez na Itália, não. Por outras palavras: em Portugal há pessoas como Primo de Rivera, e acaso também como Mussolini (concedamo-lo); há generais, capitães e soldados, como os de Espanha; mas nada que se pareça, por enquanto, com os Camisas Negras do italiano.
That is the question."
Barradas de Oliveira («A Rua», n.º 220, pág. 19, 28.08.1980)
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