Ramalho na Vidigueira
Sobre as relações entre o cante alentejano e a música litúrgica já muito se escreveu (Cónego Alegria, Monarca Pinheiro, Jorge Raposo...), e com entendimentos diversos. Veja-se a propósito este excerto que retirei da correspondência de Ramalho, relatando uma curiosa observação pessoal vivida em 1888.
“Passei a 4ª feira em Viana, e vim à noite para a Vidigueira. Ontem, 5ª feira, trouxeram em procissão da vila para aqui a imagem de Nossa Senhora das Relíquias, que tinha ido desta igreja do convento para a igreja da freguesia a pedir chuva. Não se imagina o que são estas procissões do Alentejo, que eu nunca tinha visto. 5 ou 6 mil pessoas acompanham os guiões e o andor, vestidas de festa e atirando foguetes. Toda essa gente canta em coro durante todo o percurso da procissão. Perdi todas as ilusões que tinha a respeito da superioridade da música coral do Minho. Os alentejanos são muito mais músicos do que os minhotos. Os homens quando cantam em grupos de cinco ou seis põem logo em combinação os seus diversos timbres de baixos, barítonos e tenores e tiram efeitos de terceto. Os cânticos em coro são lindíssimos. Ontem com a igreja, que é grande, apinhada de gente, o coro de todas as vozes parecendo fazer um balanço de onda do altar-mor até à porta do fundo, era de um efeito inesperado e profundamente comovente pela música e pela devoção de toda a gente. Ontem fizeram a festa da despedida da Senhora na vila. Hoje é que é a festa aqui com missa cantada, sermão, ladainha e arraial na quinta. A decoração do adro com bandeiras e festões de murta e um arco foi dirigida por mim. Aqui, realmente, não se pode estar melhor.”
(Ramalho Ortigão, em carta a sua mulher, datada de uma sexta-feira de 1888)
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