quinta-feira, novembro 20, 2003

ACÁCIAS RUBRAS

Era uma vez ...
Era uma vez uma bela cidade debruçada sobre as águas azuis de uma grande, vastíssima baía, saída de sete rios, entrada para sete mares. Nela vivia gente de todas as raças, - europeus, africanos, asiáticos - como se fossem todos de uma só raça. Nela havia templos de todas as religiões. Era uma cidade ecuménica. E, além de ecuménica, paradisíaca: Todos os anos, quando Outubro chegava, toucavam-se de lilás as copas frondosas dos seus jacarandás; semanas depois, ao romper da manhã, o Sol incendiava as suas acácias rubras.
Era uma vez uma cidade, onde toda a gente se conhecia, onde toda a gente se cumprimentava, onde toda a gente perguntava: -"como está, passou bem?,". Ninguém tinha pressa e todo a gente atravessava as ruas nos sítios onde elas deviam ser atravessadas - e só nesses.
Não havia nessa cidade - e com grande espanto das cidades suas irmãs - o uso da gorgeta. O facto de se servir uma cerveja bem gelada, de se cortar o cabelo e desfazer a barba a uma pessoa, de se deslocar de automóvel um transeunte, implicava, apenas, o custo do serviço.
Também com espanto dos outras cidades suas irmãs, havia cinzeiros nas mesas dos cafés dessa cidade. E ninguém ignorava que os cinzeiros estavam ali para receber a cinza e as pontas dos cigarros e não para serem levados para casa, como se fossem lembranças das Caldas da Rainha. Era, em suma, uma das mais civilizadas, mais bem-educadas cidades que até hoje conheci por todo o mundo.
Tinha a cidade, como todas as cidades, enormes bairros suburbanos; imensas “favelas" - mas por essas favelas qualquer pessoa passava tranquila a toda a hora; a delinquência não vivia ali. E tinha, como todas as cidades já têm, prédios muito altos, muito parecidos com armários, colmeias de cimento, ficheiros gigantescos de aço e de vidro; mas não eram prédios para neles se viver - eram prédios para negócios; para se viver, cada qual tinha a sua casa, o seu pequeno jardim, a sua varanda. Em matéria de urbanização, poucas cidades se lhe comparavam.
No campo gastronómico, essa linda cidade era famosa, pelos seus camarões fritos ou grelhados; eram bons, os camarões. E eram baratos!
Como todas as cidades, grandes ou pequenas, lindas ou feias, também essa tinha os seus segredos, a sua história-que-não-se-conta, as suas esquinas de pecado, que eram, às vezes, apenas, o pecado das suas esquinas. Mas tinha, em contrapartida, o discreto recato daqueles frutos muito doces, muito saborosos, que todavia não dispensam o talher de sobremesa ...
Agora, em cada Outubro, vejo florir num jardim vizinho de minha casa a copa desgrenhada de um velho jacarandá, trazido para Lisboa sabe-se lá por quem, sabe-se lá quando, sabe-se lá de que terra dos trópicos. Sei que tal acontece nos jacarandás da perdida e distante cidade. Sei que todos os anos, quando Outubro chega, continuam a toucar-se de lilás claro os jacarandás, para semanas depois, como sempre, o Sol incendiar as acácias rubras; fazer de cada árvore uma fogueira: Mas o resto, como é agora? O resto, como foi e para onde foi?
Nunca me recordo de como se chama agora aquela cidade. Só me lembro de que se chamava então - Lourenço Marques.

0 RECORDADOR


A pequena crónica acima transcrita foi publicada há 22 ou 23 anos no semanário “A RUA” (não sei a data, porque a encontrei num recorte sem data). Saiu numa coluna intitulada “Do passado ao presente”. Também não tenho a certeza da identidade de quem a escreveu; embora as opções sejam poucas ...
Publico-a hoje aqui lembrando a memória saudosa de António Maria Zorro e de Abel Tavares de Almeida; e com um aceno de amizade para José Maria Zorro, José Maria Tavares de Almeida, e, sempre, Cristina Câmara.

1 Comments:

At 9:52 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Magnífico texto, pesquisava sobre acácias rubras, tão deslumbrantes quanto as amarelas, perfeição da natureza, quando deparei-me com sua publicação sublime, fico feliz por ter resolvido dividi-lo com o mundo.
Um abraço,
SHEILA (sheilynha@hotmail.com)

 

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