A OLIVEIRA
"Naquele tempo - já não sei se na quarta classe da Instrução Primária se no primeiro ano do Liceu - todos nós aprendíamos a ter amor às arvores; a isso nos incitavam aqueles belíssimos versos de António Correia de Oliveira, que se incluíam nas selectas escolares e que assim começavam: "Ouve, meu filho: cheio de carinho,/Ama as árvores, ama” ...
Nas imediações das escolas e dos liceus não havia pois outro perigo moral que não fosse o tal jogo do “negus”; - em vez de traficantes de droga e de literatura “porno”, a clientela comercial que nos assediava era exclusivamente constituída por vendedores de gulodices, principalmente de intragável torrão de alicante. Destacava-se entre eles uma velhinha pequena e frágil, que nos vendia tremoços, amendoins, pevides e, supremo requinte, duríssimas pinhoadas; era tão pequena que agigantava qualquer de nós, mesmo os mais franzinos; todavia, mais do que a sua pequenez, mais do que a brancura imaculada dos seus bandós, mais do que o luzidio negrume das suas roupas de antiquíssima viúva, o que impressionava naquela figurinha era a espantosa vivacidade com que se movia, não obstante o peso dos cestos que a ajoujavam; era a sua extraordinária vitalidade.
Já em outro tempo - naquele em que se começa a ter ideias sobre a vida, as coisas e as pessoas - tomei conhecimento com o Largo da Oliveirinha e com a árvore que lhe dera o nome. O Largo era e é a meio da Calçada da Glória, encostado ao muralhão de S Pedro de Alcântara; a árvore, naturalmente, era uma pequena oliveira, quase anã, com um tronco rugoso a atestar-lhe a velhice, mas ainda com meia dúzia de ramadas cobertas de folhagem miudinha e esguia, naquele verde baço inconfundível. Velhíssima, sem dúvida, mas cheia de seiva.
Por qualquer misteriosa associação de ideias, a pequena oliveira da Calçada da Glória lembrou-me logo, simultaneamente, os versos que me exortavam a amar as árvores e a respeitosa admiração que me causava, à saída da escola, a velhinha vendedora de colares de pinhões. Enquanto por ali tive que passar quase todos os dias, a pequena oliveira da Calçada da Glória tornou-se-me querida - mais do que isso: tornou-se-me como que imagem de devoção no livro de horas lisboetas que eu começara a viver.
Muitos anos depois, ao voltar a descer ou a subir a íngreme calçada, tive o desgosto de ver que da pequena oliveira não restava mais do que um cepo, a oferecer-se como assento a quem vinha cansada da escalada; ou secara definitivamente ou alguém a havia decepado e morto; de qualquer modo, a velha oliveira, que reunira em si a memória de um poema e de uma vendedeira de pinhões, deixara de existir...
Isso julgava eu. Tornei há dias a passar pelo sítio. O que era um cepo voltou a ser uma árvore - uma velha o!iveirinha de que irrompem de novo as ramadas de miúda e esguia folha verde-cinza. Desde há muito eu sabia serem as oliveiras árvores que duram séculos (há quem diga que algumas das que se veneram em Jerusalém foram contemporâneas de Cristo), mas não calculava que fossem capazes de tamanha resistência. A oliveirinha da Calçada da Glória já não vale só, para mim, por me manter ligado ao amor às árvores e a uma longínqua recordação de infância. Vale, sobretudo, como lição de esperança.
O Recordador"
O texto acima foi publicado a 29 de Maio de 1980, no semanário “A RUA”, na coluna “Do passado ao presente”, de Abel Tavares de Almeida. Republico-o hoje porque de repente me surgiu como uma magnífica alegoria para este dia 1º de Dezembro.
E já agora, se me permitem a confidência, juro que também eu naquele Inverno de 1979 e Primavera de 1980 tinha observado com tristeza como por ocasião de umas obras menores ali realizadas o pessoal camarário tinha desnecessariamente reduzido a oliveirinha que dava o nome ao largo a um triste tronco decepado; e depois, meses corridos, continuando a subir e a descer o elevador da Glória, com súbita alegria constatei que a pequena oliveira reverdecia e alevantava ramos ao céu, mostrando-se vigorosa à gente que passava. Como no poema de Mário Beirão, o velho tronco em flor estendia os ramos, vivos e viçosos.
Haverá quase vinte anos que não vejo a Calçada da Glória, nem o velho elevador amarelo, nem o Largo da Oliveirinha. Não sei se a oliveira ainda lá está, ou se teve sumiço, vítima dalguma empreitada requalificadora.
Mas nunca mais esqueci a lição de vida e de esperança, como o Abel Tavares de Almeida.
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