Aborto, vida e sociedade
No aborto estético, que já descrevi, ou no aborto utilitário, que todos conhecemos, explicado em geral por contrariedades de momento (a vida, a carreira, a casa, o curso, a inoportunidade), deparamos com motivações de conveniência, situadas claramente no contexto de uma sociedade hedonista, onde nada mais conta ao lado da satisfação egoísta dos impulsos e objectivos individuais. Mas não há teorização, nem objectivos de natureza política ou social.
No aborto ideológico, que também mencionei, o que se encontra é evidentemente uma posição sobre a vida e a sociedade, consciente ou ainda difusa. Os seus apaniguados defendem entusiasmados o aborto como um direito próprio dos seres humanos do sexo feminino, assumindo que deixa de haver qualquer protecção jurídica para o humano ainda não nascido, ou seja que o feto não é um bem jurídico, nem o poderá ser a vida, por si só.
Daqui decorre com lógica que os defensores dessa posição são também defensores da eutanásia: a vida sem o que chamam de dignidade não vale a pena ser vivida. E dando um passo mais assumem-se logicamente como defensores de políticas eugenistas; ao menos que se trate de esterilizar os seres humanos deficientes (aqueles que nasceram escapando à filtragem do diagnóstico pré-natal), de modo a que não possam transmitir as suas malformações e taras. Do mesmo passo, também será uma vantagem para a sociedade a esterilização de todos aqueles que, embora nascidos de acordo com todos os padrões de normalidade predefinidos, por qualquer azar da vida ameacem transmitir doenças que irão propagar-se nas futuras gerações.
E sem grande esforço se chegará à demonstração da desnecessidade de sobrecarregar a sociedade com o fardo terrível dos doentes terminais, dos dependentes, dos portadores de doenças incuráveis.
O mais difícil será definir com rigor o que será a medida padrão para a vida com dignidade e merecedora de tutela jurídica, a tal que constituirá ela sim um bem jurídico de primeira ordem.
Mas o caminho aponta para o “brave new world”. O planeamento para a perfeição.
Curiosamente, muitos daqueles que publicamente pugnam por estas correntes de pensamento tornam-se de súbito defensores da vida humana inviolável, e da ausência de qualquer direito da sociedade para dispor dela, quando se entra na discussão da pena de morte. É a única situação em que a vida humana, em si e por si, lhes surge dotada de tal valor.
Mas nessa perspectiva não se compreende porque motivo a sociedade que tem todo o direito de regulamentar as condições em que os seus membros inaptos para a vida social por razões físicas, em que nenhuma culpa lhes pertence, deixam de ter as suas vidas reconhecidas como um valor, não poderá regular também os casos em que por demonstradas razões comportamentais as vidas de outros dos seus membros passam a constituir um valor negativo.
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