sexta-feira, dezembro 26, 2003

Ainda a sinistralidade rodoviária

Por estes dias festivos, como sempre acontece, aumentam em número e dimensão os acidentes nas estradas.
Ocorreu-me por isso deixar aqui mais algumas reflexões sobre o problema (na sequência dos estímulos e apelos da campanha Paz na Estrada).
Sobretudo sobre um ponto que me parece crucial, e que se me afigura merecer análise atenta. Esse ponto traduz-se, em síntese, na incapacidade total para a autocrítica que se constata em qualquer estudo ou em qualquer observação empírica sobre os nossos condutores.
Ao longo de muitos anos de trabalho que me puseram em contacto directo com inúmeras tragédias rodoviárias ainda nunca encontrei nenhum culpado. Por mais grosseira que seja a negligência ou a temeridade, o máximo que um condutor concede é que teve um azar tremendo. Culpa não; isso ou são os outros que a têm toda, ou foi o estado da estrada, ou a chuva desse dia, ou o Sol que estava de frente, ou os buracos, ou as lombas, ou as curvas, ou as rectas.... Tudo é admissível no sentir de um condutor português; menos a sua própria responsabilização.
No processo criminal em que está em causa a morte de alguém surge quase invariável a tendência para explicar que a culpa foi do morto. Evidentemente que este não pode responder com idêntica tese sobre o vivo - mas se pudesse quase certamente o faria de igual modo.
Com esta mentalidade absolutamente generalizada como é possível qualquer optimismo? Bem podem uns bater-se por um sistema "informativo-formativo", em cujas virtudes acreditam; bem podem outros batalhar pela eliminação dos factores de sinistralidade que ao Estado e aos organismos públicos compete eliminar; bem podem outros reclamar maior vigilância policial e severidade repressiva; por mim não creio que seja possível qualquer melhoria que se veja, mesmo que sejam utilizadas todas e cada uma dessa vias, enquanto não mudar esta mentalidade que torna os condutores portugueses insensíveis à culpa.
Para mais, evidência que surge destacada em qualquer estudo é que não há acidente grave em que não se encontre na sua génese uma conduta humana - operando sejam quais forem as condições da via, o estado do tempo, ou os erros alheios.
Como se muda o factor que aponto? Francamente não sei. Mas suspeito que não seja simplesmente com educação ou informação ou medidas no âmbito estritamente rodoviário. Educação sim, acredito. Mas educação num sentido muito mais geral, e radical.