Direito Internacional
Nos meus tempos de estudante tive que fazer uma disciplina com o nome de Direito Internacional Público. Nessa altura já a minha percepção da realidade jurídica, tal como é normalmente compreendida, rejeitava a aceitação da autenticidade de tal corpo normativo – enquanto Direito, entenda-se. O Direito, dada a sua natureza de sistema normativo assistido de protecção coactiva, só é concebível onde exista essa coercividade. Mas onde a coercividade existente não resulte senão das relações de força entre os diversos sujeitos não estamos perante um fenómeno jurídico. E onde o acatamento da norma não possa resultar senão da livre vinculação dos sujeitos não existe também um sistema jurídico.
O direito remete assim claramente, nas sociedades modernas, para o conceito de soberania.
Esses meus entendimentos nada têm de original, e sendo comuns e parecendo-me alicerçados de modo óbvio pela observação e pelo raciocínio não me fizeram antever os melindres que iriam suscitar.
Mas suscitaram, sob forma de indignação e revolta acesa numa criatura que estava incumbida de me classificar e que acabou por me forçar à repetição do exame respectivo. Tratava-se de membro notório do sector do Ministério dos Negócios Estrangeiros conhecido habitualmente por “internacional cor-de-rosa”, e hoje parecem-me lógicos os seus sentimentos perante o trabalho que lhe apresentei: aquilo era um pouco como cuspir-lhe na sopa.
O tal trabalho, que entretanto perdi pelo meu usual desmazelo, nascera imediatamente da leitura de Hegel, na tradução dos “Grundlinien” saída na Guimarães Editores, acompanhada das palavras sempre sábias de Orlando Vitorino.
O meu espírito desconfiado quanto ao Direito Internacional Público encontrara uma construção lógica na ideia de “Direito Estadual Externo”, exposta por Hegel: cada Estado tem a nível do seu Direito Público uma regulamentação das suas relações com o exterior, emanada das suas próprias fontes e vinculando os seus órgãos e agentes, e que constitui um ramo do seu ordenamento jurídico – e este é o único ramo do Direito que pode ser denominado de Direito Internacional Público.
A evolução da política internacional nestes últimos anos obrigou-me a reflectir novamente nesta questão da existência de Direito Internacional Público. Por um lado a emergência de uma única potência planetária que passou a assumir de forma expressa que rejeita qualquer vinculação externa, qualquer norma que não seja emanada da sua própria soberania, definida em função dos seus interesses próprios, desfez de todo as ilusões habitualmente servidas sobre igualdade dos estados, comunidade internacional, tribunais internacionais, organizações unidas de estados soberanos, etc. etc.
Ou seja, o Direito Internacional a que aludem os tratados não existe e não existiu nunca.
Por outro lado, a situação que parece resultar desta evolução de forças pode, à semelhança do que aconteceu na sua época com o império romano, conduzir à formação de um verdadeiro direito internacional, no sentido de corpo normativo assistido de protecção coactiva que regulamenta as relações dos diversos sujeitos da comunidade internacional.
Será o corpo de normas definido pela única entidade soberana, a qual a ele não se vincula, pelo que terá por destinatários os demais, esses efectivamente sujeitos – pois dado o poder universal do império existirá de facto e pela primeira vez a coercividade necessária para que se possa falar em sistema jurídico.
O Direito Internacional Público existirá então – sob a forma de “jus publicum americanum”.
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