O aborto ideológico
Lembro-me como se fosse hoje. Foi ainda em 1974 ou nos primeiros meses de 1975, andava eu no liceu, quando surgiu de rompante a polémica sobre o aborto.
A ponta da lança da campanha a favor da legalização era então constituída pelos movimentos de emancipação feminina, aparecendo só atrás deles os partidos da esquerda clássica, desde o cor-de-rosa ao vermelhão mais radical. Os chamados grupos de libertação da mulher e a respectiva ideologia viveram então uns efémeros meses de glória em Portugal, a reproduzir em moda passageira o que já tinham perdido por outros lados. Ainda deu para queimar soutiens, em cerimónia pública no Parque Eduardo VII.
Os argumentos matraqueados nessa altura em regime de monopólio na comunicação social eram em tudo iguais aos de agora, surgindo porém com frequência em tom muito mais extremizado – como tudo o resto.
Foi então que uma vez ao serão, estando eu à mesa e calhando olhar para televisão, ouvi e vi uma senhora, escritora consagrada no seu meio, militante empenhada dessas causas, argumentar ardorosa que a mulher só seria verdadeiramente livre quando fosse inteiramente senhora do seu próprio corpo, e nomeadamente quando o aborto pudesse ser visto e encarado com tanta naturalidade como a decisão de extrair uma borbulha.
Senti um calafrio, mirando a carantonha alucinada da megera, a cabeleira desgrenhada a encimar o quadrado dos óculos. Não sei se lhe chame terror, pelo menos o pânico de que aquela visão se concretizasse aterrou-me até ao mais fundo do ser.
Naquela face sinistra formou-se em definitivo a minha convicção militante. A questão do aborto é uma guerra ideológica, um combate decisivo pela civilização e pela vida.
Mais recentemente, quando do debate que precedeu o referendo, voltei a deparar-me com o aborto ideológico. Em dada discussão esgrimiam-se razões, e um muito conhecido escultor eborense, encolhendo os ombros, sai-se gaguejando com a sinceridade própria da senilidade e da estupidez, embaraçando os correligionários presentes: “a vida ... a defesa da vida ... mas o que é a vida... tudo são formas de vida ... olhe, uma alface, por exemplo, é uma forma de vida ... e todos comemos salada... "
Escusado será comentar que no caso da alface ser proclamada espécie em perigo por algum grupelho iluminado logo o generoso artista se desdobraria em iniciativas de protecção à alface, e sem dúvida exigiria a criminalização de quem colhesse alfaces.
Não, não há lugar para ilusões ou para equívocos. Trata-se realmente de uma pulsão de morte, que atinge o âmago mais fundo das sociedades humanas como as entendemos e conhecemos.
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