terça-feira, dezembro 30, 2003

Para Castelo de Vide

Neste caso a poesia de Francisco Bugalho pinta um quadro como um mestre flamengo. Repare-se no jogo de luz e sombra, na atmosfera que desenha, no retábulo de um íntimo natal.

NASCIMENTO

A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia.

Cá fora,
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos
Ia surgindo à porta
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Para logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.


Francisco Bugalho