"Portugal Contemporâneo"
Primeiro foi o Jaime, na improvisada redacção do “Futuro Presente”, então num segundo andar da Rua de São Nicolau, no coração pombalino da Baixa, que sempre foi o escritório de advogados Moura Coutinho - “Oh pá! Isso é fundamental!”
Fiquei preocupado. O Jaime, geralmente parco de encómios e moderado de entusiasmos, exprimia sincera admiração, a brilhar por trás do fumo do cigarro e dos óculos de muitas dioptrias. E inquietava-se com o estado da minha formação cultural.
Envergonhei-me, pois era verdade que já tinha passado bem os vinte anos e nunca tinha lido o “Portugal Contemporâneo”.
Estava ali assente que era preciso assinalar o livro e o autor, aproveitando o tempo em que se completavam cem anos sobre a edição. E foi na sequência disso que o “Futuro Presente” veio a dedicar um número ao “Portugal Contemporâneo” e a Oliveira Martins, com colaborações várias (saliento Borges de Macedo), comemorando o centenário da obra.
Pelo meu lado, discretamente, lá encontrei os dois volumes do “Portugal Contemporâneo” e tratei de preencher a lacuna. Escusado será dizer que o Jaime tinha razão. Ler o “Portugal contemporâneo” é essencial para compreender ... o Portugal contemporâneo.
Nunca mais deixei de o proclamar. Em qualquer discussão sobre a nossa vida política, sou geralmente eu que disparo - “Oh pá! Mas isso já está no “Portugal Contemporâneo”!
Entretanto, aconteceu uma daquelas coincidências raras. Na altura frequentava eu a Faculdade de Direito de Lisboa. Digo frequentava, e não é mentira, porque ia lá todos os dias. Mas as aulas, enfadonhas de morrer, provocavam-me inultrapassável alergia. E consequentemente o tempo das ditas era ocupado muito mais frutuosamente na Faculdade de Letras, logo ali em frente.
Na Faculdade de Letras, sobretudo no lado das Línguas e Literaturas, as turmas eram então constituídas em regra por cerca de cem estudantes, dos quais noventa eram meninas, dois ou três eram claramente equiparados e só outros dois ou três eram definidamente do sexo masculino. Tornava-se por isto, se mais não houvesse, um ambiente refrescante e agradável. Mas havia outros motivos, como se depreende da tal coincidência a que aludi.
Dava-se o caso de estar então na fase final da sua carreira docente, com a liberdade que isso faz supor, o velho António José Saraiva. E tinha ele a responsabilidade de uma cadeira denominada “Cultura Portuguesa”. Aliás era este também o tema da sua reflexão e estudo nos últimos anos de actividade intelectual, com se constata na respectiva produção. Ora por convergir no apreço manifestado pelo Jaime quanto à obra de Oliveira Martins decidiu António José Saraiva dedicar toda a disciplina nesse ano ao estudo e comentário do livro em questão.
E assim foi; o mestre lia e discorria, estabelecia conexões, reflectia e filosofava, interrogava-se, pensava. Era uma experiência única, um exercício vivo de inteligência e cultura. Pedi naturalmente ao velho professor que me permitisse assistir sempre, aproveitando a facilidade de acesso deixada pela informalidade reinante. Ele primeiro olhou-me, com um leve ar admirado e desconfiado, estranhando o pedido ou pensando na razão mais à vista. Mas aceitou. E foi assim que eu, estudante de Direito, frequentei a cadeira anual de Cultura Portuguesa regida por António José Saraiva na Faculdade de Letras e que este dedicou ao “Portugal Contemporâneo” e a Oliveira Martins.
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