A presidência e o abortamento
Como já sucedeu em outras ocasiões, o senhor Presidente da República, num pessoalíssimo entendimento sobre os deveres de neutralidade do cargo, quis intervir num debate em curso e que divide a sociedade portuguesa.
Repare-se: não digo que quis dar a saber a sua opinião. Essa ninguém a ignorava. O que quis foi efectivamente intervir, tomar parte activa, numa discussão política em marcha. Quis fazer política, aproveitando as vantagens do lugar.
E fê-lo, como também já aconteceu de outras vezes, de forma enviesada, transmitindo a mensagem sem o incómodo de se explicar e justificar.
Este é o significado iniludível do indulto concedido à enfermeira da Maia que tinha sido condenada pelo poder judicial, por prática sistemática e lucrativa de crimes de aborto, na pena de sete anos e meio de prisão. Pela graça do presidente a pena foi reduzida para metade. Poderá sair da cadeia já em Fevereiro. Provavelmente terá sido por vergonha que não foi decretado que saísse antes do Natal.
Recordo que a condenada, no dizer insuspeito da D. Inês Pedrosa, dedicava-se ao aborto com grande competência e profissionalismo, pelo que até mereceria a gratidão dos interessados. Com um bocadinho de sorte ainda irá parar à lista dos agraciados do Dez de Junho, ou quiçá dos recomendados para a Ordem da Liberdade.
O povo, com o saber de quem já viu muito, comentará apenas que quem tem amigos não morre na prisão.
Por mim, não resisto a recordar a minha suspeita de que as preocupações dos abortistas ao defenderem a legalização dessas práticas não vão só para as desgraçadas apanhadas na engrenagem – estendem-se também e com especial atenção aos empresários do ramo. Ora aí está: o senhor Presidente marcha em socorro da iniciativa privada maiata.
Fico sem saber se será ainda o impulso originário da velha esquerda de onde vem ou se será já alguma aproximação à direita nova agora em voga na praça.
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