domingo, janeiro 25, 2004

FREI BALTAZAR DA ENCARNAÇÃO

Um homem extraordinário, este Baltazar da Encarnação, curiosíssima personagem do nosso século dezoito, que teria relevo e projecção singulares se em Portugal houvesse a preocupação, como nos outros países, de valorizar aos olhos do Mundo as grandes figuras nacionais.
Não se sabe em que dia nasceu, mas conhece-se a data em que foi baptizado: 29 de Agosto de 1683, em Serpa, onde residiam seus pais - Pedro Álvares e Brites Correia. Baltazar Casqueiro - tal era o seu nome civil - ficou órfão ainda menino, e foi uma irmã da mãe quem o criou e lhe fez aprender o ofício de sapateiro, primeiro exercido em Évora, e depois em Lisboa, já como oficial.
Manifestando desde muito novo temperamento irrequieto e turbulento, adquiriu fumaças de valentão e divertia-se a provocar constantes desordens e rixas. “Ao anoitecer, depois de acabar o trabalho, percorria as ruas, armado, e provocava contínuas bulhas e contendas; e aos domingos, mesmo de dia, andava procurando os mais valentes para com eles brigar, e afugentando os oficiais de justiça que pretendiam prendê-lo”. Tornou-se, deste modo, conhecido e temível, parecendo que nada poderia fazê-lo arrepiar caminho. Muitas vezes era ferido nas brigas que provocava, mas cada vez mais se afundava na vida desregrada e libertina a que o seu feitio o impelia. Até que, em 1705, se alistou no exército. E durante seis anos andou pelo Alentejo nas campanhas da Guerra da Sucessão de Espanha, combatendo como soldado.
Ao ser desmobilizado, Baltazar Casqueiro regressou a Lisboa - e surpreendentemente começou a mudar de vida. Tinha então 28 anos. Empolgado pelo arrependimento, passou de um extremo ao outro, tornando-se exemplo de contrição e penitência. Até que em 1713 decidiu abandonar completamente o mundo. Retirou-se então para as Covas de Monfurado, ou Covas Infernais, perto de Montemor-o-Novo - local solitário e adusto, no meio da serra. Três anos antes havia ido para esse ermo um caldeireiro de Lisboa, a fazer penitência, o qual levara consigo uma imagem da Virgem a que deu a invocação de Nossa Senhora do Castelo. Outros convertidos se juntaram a esse penitente, vivendo todos no mais rigoroso ascetismo.
A eles se juntou Baltazar. Em 1717 o número de eremitas que ali viviam ascendia a 25. Tinham construído toscas choupanas, e numa pequena lapa escavada entre penhascos haviam improvisado uma capela. Sustentavam-se de esmolas e do produto de trabalhos manuais, mas a maior parte do tempo passavam-no em oração, entregues a duras penitências e mortificações, vestidos de burel. Por fim, Baltazar Casqueiro tornou-se o chefe desse grupo de cenobitas e em breve formou uma congregação, para patrono da qual escolheram o grande convertido que foi S. Paulo. Baltazar e os seus companheiros, ao cabo de vida tumultuosa e dissoluta, tinham também encontrado a sua estrada de Damasco.
Em 1722, o Geral da congregação da Serra de Ossa autorizou os eremitas de Monfurado a usarem escapulário e deu-lhes carta de confraternidade. Três anos depois era benzida a igreja que entretanto tinham edificado. E em breve, a fama desses santos homens chegou a Lisboa. Então o infante D. António, irmão de D. João V, tomou-os sob a sua protecção.
Baltazar tinha já 40 anos quando começou a aprender a ler e a escrever. Estudou depois gramática latina e preparou-se seguidamente para receber ordens. Isso sucedeu a 17 de Junho de 1732, passando desde então a usar o nome de Baltazar da Encarnação.
Entretanto, o infante D. António dotou a nova congregação com o património de 3000 cruzados, Os estatutos - depois de atenuados no seu excessivo rigor - foram aprovados, e Baltazar da Encarnação foi nomeado director da congregação. O antigo sapateiro brigão adquirira vastos conhecimentos teológicos, obtivera licença para prégar. Empreendeu então uma viagem a Roma, donde regressou com licença e nomeação de missionário apostólico. Tinha conseguido, finalmente, regularizar por completo, perante a igreja, a sua situação e a da congregação que fundara e dirigia.
Chegado a este ponto da sua vida, Frei Baltazar da Encarnação devotou-se totalmente à evangelização e à caridade. Percorria incessantemente as terras do País e diz-se que em quatro anos prégou nada menos de 800 sermões. Em Lisboa, fundou em 1737 a confraria da “Caridade Geral”, para socorrer pobres e necessitados, nomeadamente os presos, e próximo da Sé fez construir uma ermida - a ermida da Caridade - para os Irmãos assistirem aos ofícios divinos. Mais tarde, também em Lisboa, fundou o convento do Senhor Jesus do Monte, que primeiramente se chamou “da Boa Morte”. Em 1742 esteve outra vez em Roma, e a 25 de Setembro de 1760, com cerca de 77 anos, faleceu em Lisboa, deixando editados alguns sermões e obras de devoção, que ficaram a atestar a sua cultura e os seus dotes de inteligência.
Baltazar Casqueiro, o jovem sapateiro turbulento e analfabeto não passava já de longínqua recordação. Frei Baltazar da Encarnação, depois de meio século de vida ascética, de activa e heróica caridade, depois de meio século devotado ao conforto espiritual e físico dos miseráveis, tomara-se autêntico discípulo e émulo de S. João de Deus e de São Vicente de Paulo.

DOMINGOS MASCARENHAS