sexta-feira, janeiro 23, 2004

NAÇÃO, “SÍTIO” OU ENTE?

Na definição devinda clássica de “Nação politicamente organizada”, o Estado não existe. Os aparelhos de Poder assim chamados têm com as comunidades destinatárias o vínculo único de sobre elas o exercerem. Ou seja, encontramo-nos perante uma situação de objectiva incomunicabilidade estrutural.
Por um lado, o “Estado” determina e impõe, procurando constranger a “Nação” ao acatamento. Por outro, a “Nação” diligencia viver esquivando-se o mais possível à rede tecida pelo “Estado”. A formalidade de os membros da “Nação” designarem os titulares do “Estado” vem a ser o ponto de encontro considerado.
Algo se adiantará, todavia, reconhecendo que a definição em causa não passa de ficção semântica. Tudo se terá resumido, afinal, à atribuição de designações sem curar da correspondência entre os nomes e as coisas. Pelo que, tudo ponderado, nunca existiu um “Estado” como “Nação politicamente organizada”.
A emergência de “Nação” como significante político, recordámo-lo na semana passada, é um fenómeno revolucionário.
Resultante da necessidade em que se encontraram os homens de 89 de opor um princípio a outro princípio. Mas, se o conceito surtiu valor polar, o seu conteúdo jamais foi cabalmente explicitado.
Não é isto indiferente ao paradoxo de se impor em simultâneo com o liberalismo. Como continente de uma herança social, “Nação” exprime um sentimento gregário que a afirmação individualista necessariamente distende. Ocorrida a primazia da segunda, o primeiro quase havia de reduzir-se à indicação de um sítio de existência.
Utilizando um conceito que vimos ser de múltiplas implicações, o liberalismo aproveitou-lhe apenas a delimitação geopolítica. Isto é, o uso passou a designar um espaço, e os seus ocupantes, em que se verificara determinada sucessão de poderes. A “Nação” sucedia ao “Reino” no sentido de sujeito de específica entidade política. Assim, a circunscrição do facto nacional reduz-se, na doutrina liberal, ao território e a uma população com certa homogeneidade. Mas ainda esta, de acordo com os princípios, numa perspectiva de precipitado atomístico. Substituindo à existência de estruturas de expressão o estabelecimento de esquemas de representação formal.
Importa considerar, para entendimento do problema, que a Revolução Francesa já encontrara “Estado” como significante político. A seu respeito não se verifica uma emergência, mas uma sucessão na titularidade. Um soberano sucede a outro, dele recolhendo a posse do aparelho de governo assim denominado.
Dada a diferente natureza do novo titular, é evidente a necessidade de alterações nesse aparelho. Sobretudo porque, deixando o Poder de possuir expressão pessoal, se torna imperativo nele o incorporar. Isto é, pelo mecanismo da designação formal dos seus detentores o “Estado” torna-se o aparelho do Poder.
Dar a “Nação” como “politicamente organizada” corresponde, portanto, à instalação do mecanismo que proveja a essa designação. Fica de fora, assim, qualquer exigência estrutural, de resto excluída pela redução do conceito de referência. Ou seja, a definição contempla apenas os requisitos de funcionalidade do aparelho de Poder nos quadros do sistema homenageado.
Outra questão a pôr, todavia, é a de se tem justificação pensar-se na “Nação politicamente organizada”. Ou, por outras palavras, se a fórmula, ainda em grande parte inexplorada, assume viabilidade futurível. E, nessa perspectiva, quais poderão (deverão) ser os parâmetros e vectores da sua concretização.
A este respeito, antes de mais convirá anotar que o problema principal reside na determinação dos conceitos de referência. Em primeiro lugar, entende-se a “Nação” como o sítio de que falávamos há pouco ou como realidade global e determinante? Secundariamente, encaram-se padrões formais ou materiais?
Responder à primeira questão implica primordialmente averiguar qual o grau de subsistência da comunidade em causa. Isto é, quais os suportes identificáveis para o assentamento e qual a receptividade aos mesmos. Ou, em alternativa, qual o consenso na necessidade de os estabelecer e/ou retomar.
Impõe-se atender, com efeito, a que se tornou corrente conceituar a “Nação” como sítio, inclusive procurando obliterar outra acepção. E que, de qualquer modo, a intensificação das relações intercomunitárias distende a força do conteúdo de cada qual. Embora também haja de ver-se que esse desenraizamento pode motivar o movimento inverso.
Para além disto, no entanto, o tópico da questão situa-se nas formas de permanência da herança social e no seu peso comunitário. Mantêm de facto capacidade vinculativa, ou pelo menos são sentidas como património a assumir? Ou seja, existe uma tradição compartilhada, ou pelo menos o vazio da sua ausência?
Parece legítimo adiantar que, na generalidade dos casos, sob uma ou outra forma as respostas serão positivas. No primeiro termo da alternativa, a “Nação” como realidade global e determinante permanece, sem embargo do enquadramento. No segundo, o seu apelo pode constituir alicerce de revitalização ou lançamento.
Logicamente se entenderá que, ao menos como rotinas indispensáveis, certas notas do facto nacional são recolhidas por qualquer formalismo. Reside a dificuldade principal, por conseguinte, no valor que lhes seja atribuído e na dinâmica que possam fundar. Cumprindo ter em conta que torná-las adjectivas por norma surge como processo de desligação.
Quaisquer os seus perfis, com efeito, os formalismos tendem a fazer-se aceitar como substância, relegando esta para a posição de acidente. Encontramos flagrante exemplo desta diligência no discurso oficial “deste país”, colocando a Democracia acima da Pátria. Quando, obviamente, nenhuma forma pode valer mais do que a entidade que a ela recorre.
Configura-se a questão essencial, por conseguinte, em estabelecer o elenco das expressões concretas em que se modela a comunidade. Desde logo assumindo que essas expressões em si representam uma validade autónoma e insubstituível. Porque, quaisquer os seus peso e âmbito, significam elementos constitutivos do complexo orgânico.
Assim excluída a “Nação” como sítio, fica desimpedido o caminho para a sua contemplação como realidade. Não se pode omitir, porém, que o “Estado” continua dispondo de instrumentos para a submeter ou instrumentalizar. Até parecendo (imaginando) proceder em ordem a proporcionar-lhe a organização de que necessita.

FERNANDO JASMINS PEREIRA