O CÓNEGO ALEGRIA E A MÚSICA LITÚRGICA
A caridade talvez aconselhasse a calar qualquer comentário ao que foi a cerimónia fúnebre de despedida ao Reverendo Cónego Alegria, no passado Sábado, na Sé de Évora.
Mas uma vez que essa virtude não esteve presente no oficiante, que aproveitou para dizer ao morto o que em vida nunca teve coragem para lhe dizer, sinto-me também desobrigado a esse respeito. Segundo o tal palerma, que também já é Cónego, numa triste demonstração do estado calamitoso em que está a Igreja Católica em Portugal, o falecido “era um espírito resistente à mudança – mas sempre com recta intenção”.
Seja pois; o oficiante em causa é um espírito aberto a todas as mudanças – e não sei da sua intenção, e até julgo que ele também não sabe.
O que vi, isso sim, foi um cerimonial que teve tudo o que o morto nunca teria tolerado, se pudesse protestar. Desde a concelebração, que ele recusava, às tristes cançonetas que ele abominava, passando pela circulação entre os presentes de uns indivíduos, que nem sei se eram padres, distribuindo hóstias pelas mãos dos interessados com a mesma solenidade com que se distribuem rebuçados.
Se em vida o afastaram, o ignoraram, o isolaram – numa solidão de décadas -, não tiveram pejo em levar à cena a última humilhação.
A certa altura, o meste de cerimónias em tom concessivo anunciou que o coral iria interpretar uma pequena peça de música litúrgica em latim, que o morto tanto insistia que era a língua da Igreja.
Creio que ecoavam nas pedras da Catedral, doendo nas consciências dos concelebrantes, as palavras que o sábio musicólogo fez imprimir no volume X do Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra (págs. 161-173), e que tiveram então ampla repercussão nacional e internacional (conheço eu publicações do artigo desde a Alemanha ao Brasil; e também em Portugal logo foi reproduzido na “Resistência”).
Tinha a Comissão Episcopal de Liturgia produzido a 22 de Novembro de 1985 uma “nota pastoral” a propósito da música nas igrejas; respondeu-lhe o Dr. Alegria desassombradamente com uns “comentários respeitosos (...)” que não digo que lhe valeram para sempre a inimizade dos senhores Bispos, pois essa já ele a tinha antes garantido, mas seriamente a reforçaram e consolidaram.
Dizia com dureza o Ilustre Capitular da Sé de Évora que na Igreja em Portugal permanecem "como verdades axiomáticas, a vulgaridade de mãos dadas com a mediocridade"; e examinando a Nota Pastoral concluia que "quando a Igreja em Portugal quis, de facto, valorizar a Liturgia com música de qualidade, fundou escolas junto das catedrais e dos mosteiros nas quais recolhia os aprendizes da arte, fornecendo-lhes o respectivo ensino perfeitamente disciplinado e protegido com regulamentos, alguns dos quais nos são conhecidos, revelando o altíssimo conceito em que, nesses tempos, era tida a função da Liturgia”. E prossegue apontando à Comissão Episcopal: "o que já não é de todo correcto é a referência aos nossos seminários apontados como alfobres do ensino da música quando a verdade, salvo honrosas excepções, é totalmente ao contrário"; "o que aconteceu também em Portugal, foi exactamente o contrário do estabelecido na letra e no espírito do articulado conciliar. (...) Todos foram juízes competentes na matéria, introduzindo, ao arrepio de toda a prática musical nas igrejas, os mais variados instrumentos (...). Aproveitando o silêncio da Autoridade, deu-se início ao reinado das violas que passaram em muitos seminários e casas religiosas, a ser o instrumento por excelência na prática da Liturgia (...). Mas, como era novidade e assumia uma forma de contestação da Tradição da Igreja, o processo violeiro propagou-se perfeitamente à vontade acompanhado de livrinhos, impressos ou policopiados com o título bizarro de Ritmos Religiosos destinados à cobertura de todas as ocorrências litúrgicas"; e isto pese embora "só a colecção Portugaliae Musica da Fundação Calouste Gulbenkian, já fez publicar até agora, nada menos do que 2774 (...) páginas de música litúrgica de autores portugueses! E todo este monumental acervo de música, pelos vistos, está condenado às salas de concerto e classificado como impróprio para o uso do tão badalado Povo Cristão (...)”
Infelizmente, nunca as suas palavras foram ouvidas; e se em 1985 já se tinha consumado de todo o abandono da liturgia, submersa na onda das mais insólitas novidades, e da música litúrgica, substituída pela tal praga violeira e pela “chansonette cléricale”, e da língua da Igreja (já não há clérigo que saiba latim ou que mais modestamente siga o Missal), desde então o panorama não cessou de se agravar. Hoje, em toda a vasta arquidiocese de Évora, e apesar das insistentes recomendações papais, para ver um padre diocesano com um simples cabeção, ou qualquer sinal que o anuncie exteriormente como tal, creio que será preciso encontrar o Paulo Cordovil – que não tendo certamente nascido o mais inteligente parece querer compensar permanecendo o mais fiel ao que recebeu.
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