quarta-feira, janeiro 21, 2004

O RETORNO DOS INTELECTUAIS

Isso de que “Marx morreu”, lema dos “novos filósofos”, já o afirmo há mais de vinte anos. Não era difícil percebê-lo e não só pelo odor que aquela morte havia deixado no ar da História, como por cálculo matemático-político. Seria bem mais cómodo e divertido regular o ritmo das ideias e das ideologias científicas e filosóficas, para se dar conta de que, no meio de uma Europa ou de um Ocidente conquistados pela nova física, quero dizer, pelo antideterminismo do quântico, o determinismo marxista seguia o mesmo rumo crepuscular da ciência em que se baseou e viveu. Foi assim que no momento em que comecei a ter certas noções de física e epistemologia, de biologia e astronomia, compreendi que uma nova ideologia estava a preparar-se nalgum sítio, capaz de substituir a antiga, do mesmo modo que a nova ciência substituía a velha. Havia que estar apaixonadamente cego pelas ilusões e optimismo do materialismo, mal denominado romântico pelos maus conhecedores do romanticismo, para continuar a viver de ideias e seus subprodutos ideológicos de tipo positivista ou materialista. Digo apaixonadamente porque o partido no poder num dos maiores países continuava e continua a subvencionar a mentira ideológica do passado aos que a preferem aos impulsos duros e gratuitos, isto é, não remunerativos, da novidade. O passado é um facto já sabido, é mais generoso do que o futuro, uma amante velha mais rica do que uma jovem.
E até há pouco os intelectuais, erradamente considerados até agora como anunciadores do futuro, têm sido os mais fiéis clientes dos donos da mentira, até o momento em que a rentabilidade do passado começou a interessar menos do que a rentabilidade do futuro. A futurologia e a cibernética, neste sentido, tiveram nestes últimos anos o seu papel, desde os livros de Kahn e Wiener até os de Toffler e Daniel Bell. E até os acontecimentos históricos do último decénio, a triste experiência de Allende no Chile, o terrorismo na Argentina, o trágico destino do Vietname do Sul, de Angola e da Abissínia, conseguiram despertar outros também sob o ponto de vista ideológico ou puramente intelectual. O envelhecimento das teorias de Marcuse, encarado até há pouco como uma espécie de profeta e hoje caído no esquecimento, como o do marxismo cristão de Garaudy, transformado pelos “novos filósofos” em bode expiatório do engano marxista, têm mudado a atmosfera que se respirava nos covis - eu diria nas tabernas obscuras - dos ambientes intelectuais franceses, por exemplo. Porém o fenómeno é hoje universal e irreversível. Até começos deste ano, o marxismo intelectual tinha-se limitado a uma espécie de triângulo político das Bermudas, formado por três capitais europeias, Paris, Madrid e Roma. Mas, depois das eleições francesas, o triângulo viu-se reduzido a um eixo, Roma-Madrid, dentro de cuja estreiteza geométrica continuam a ser debatidos os problemas do futuro do mundo segundo esquemas que nada têm a ver com o futuro nem com o mundo. O periódico “Le Nouvel Observateur” exclamava dolorosamente, há só dois meses: “A esquerda francesa está a ponto de perder, no país, o seu poder cultural". Gemido eloquente, já que por aí entrou o gérmen da decomposição. De repente, face ao desastre político, os marxistas franceses - refiro-me aos intelectuais - perceberam que estavam fora de jogo. Philippe Sollers, o antigo director da revista “Tel Quel”, nitidamente orientada para a esquerda, foi um dos predecessores deste despertar. Os “comités” para a defesa da cultura e dos direitos do homem, direitos exclusivamente marxistas, pedem a liberdade para o oriente, ali onde realmente o homem tem sido e continua a ser espezinhado. Quando alguém lê as declarações dos hispano-americanos refugiados na Europa - e ninguém lhes nega esse direito, já que o exílio é algo difícil de suportar e profundamente injusto - pedindo em gritos a libertação das dezenas ou centenas de presos, ou exigindo notícias de outras dezenas ou centenas de pessoas desaparecidas sob a tirania sem piedade dos regimes de ditadura militar e direitista do seu país, há quem sinta vontade de pedir o mesmo, mas gritando mil vezes mais forte e dirigindo a sua voz para os lugares onde, nos últimos sessenta anos, desapareceram dezenas de milhões de seres humanos. Os judeus sabem muito bem pôr em relevo a sua tragédia sob os nazis - e este é outro direito irrefutável; todavia, os cristãos não sabem unir-se para pedir contas aos herdeiros de Estaline pela morte dos seus, ou seja dos cristãos assassinados no espaço de uma ditadura civil. Bondade cristã, talvez, extensiva ao amor não só do inimigo como também do verdugo. Estou certo, ao escrever estas linhas, de que o Papa João Paulo II sabe perfeitamente como julgar tal bondade.
Mas voltemos à metanóia acima esboçada. Até o socialismo italiano, sob o controlo do comunista Nenni, se tornou antimarxista com Craxi. E o escritor italiano Leonardo Sciascia, juntamente com outros, tão pró-esquerdistas até agora quanto ele, participam no mesmo retorno.
Poderíamos falar já de um retorno à direita? É possível continuar a entender a direita como o fazíamos até há pouco? Creio que não. Creio mais que algo de novo está acontecendo no mundo, transformando em antepassados, mais ou menos ilustres, segundo os feitos, os mentores das duas facções. Quando Alain de Benoist, autor do ensaio tão famoso e discutido intitulado “Visto da Direita”, afirma que “o futuro pertence aos capazes de pensar simultaneamente o que até hoje não foi pensado mais do que contraditoriamente”, encontramo-nos perante nova possibilidade aberta à nova direita, ao que eu chamo “a direita ideal”, assente nas novidades científicas do século. Com efeito, pensar simultaneamente, como na teoria ou princípio da complementaridade, ou como no antigo, inquietante e vital “coincidentia oppositorum” (princípio, por exemplo, que separou definitivamente os surrealistas de André Breton dos comunistas de Lenine), pensar simultaneamente, digo, só é possível fora do marxismo, teoria racionalista, limitada a uma visão restrita, parcial, da realidade. 0 intelectual da nova direita é capaz, porque ser humano completo, de pensar correctamente, isto é, de maneira integral, e num espírito intimamente relacionado com a sua visão completa do mundo, com a “visão normal” do mundo, situações impossíveis de focar no materialismo dialéctico e suas arestas para pessoas limitadas. Esta perspectiva é pensável, inclusivamente como futuro político, somente fora do conceito de “revolução”, como o demonstro no meu livro “Considerações sobre um mundo pior”. 0 homem romântico era também um ser disposto a ensaiar a “coincidentia oppositorum”. Será esta possibilidade romântica, este desejo reformador até à raíz das raízes, que tenta os intelectuais e lhes dá vontade de retornar?
Poderíamos falar, pois, do fim de uma era neoclássica, materialista, determinista, marxista? E a entrada da humanidade em novo romanticismo, que não seria o primeiro nem o último? De qualquer modo, e sob qualquer aspecto em que vejamos o assunto, algo sucedeu no mundo, com tanta força e estrondo, que até os intelectuais parecem ter-se inteirado.

VINTILA HORIA