Abandonos e misérias
O “Diário da República” é certamente o jornal de maior tiragem e mais larga difusão em Portugal – o que não impede que seja pouco lido, pouco apreciado, e largamente desconhecido pelo público em geral.
E justo é que seja assim, já que não há certamente coisa mais enfadonha e desinteressante.
Todavia, de vez em quando, até o “Diário da República” traz leitura de algum proveito e interesse.
Estava eu aqui a ver uma Resolução do Conselho de Ministros em que este aprovou, há dias atrás, uma coisa a que chamou “o mapa Portugal menos favorecido”.
A intenção proclamada é vir a tomar medidas que designa como “discriminação positiva de base regional”.
E enquanto não chegam as medidas temos pelo menos o mapa indicando onde as ditas deveriam ser aplicadas.
Explicando melhor: a douta comissão nomeada pelo Governo tomou como indicador de partida o valor médio do poder de compra global dos portugueses (estão a ver, é aquele índice de que toda a gente se queixa), e usando essa média do poder de compra nacional foi averiguar quais as regiões e Concelhos em que o índice do poder de compra esteja abaixo da média nacional. São os tais do “Portugal menos favorecido”.
Os resultados são arrepiantes. Pensem os leitores: o valor médio do nosso poder de compra é aquilo que é, e não vou explicar em termos comparativos. Cada um sabe por si o que representa esse tal valor médio nacional. Pois então imagine o que sentirão e como vivem as gentes dos Concelhos com menos de 40% (quarenta por cento) da referida média nacional.
Como menos de quarenta por cento da média nacional encontramos Concelhos como Cinfães, Celorico de Basto, Ribeira de Pena, Armamar, Boticas, Penalva do Castelo.
E com pouco mais de quarenta por cento da média nacional encontramos inúmeros Concelhos – desenhando o retrato verdadeiro de todo o interior português. Interior, mas não se pense que se trata apenas de sítios remotos e de nomes exóticos, que a nossa ilustrada e cosmopolita classe política e jornalística nunca ouviu falar. Não, não se trata só de Meda, Penedono, Carrazeda de Ansiães, Freixo-de-Espada-à-Cinta, Paredes de Coura, Penamacor, ou Figueira de Castelo Rodrigo. Basta rumar a Baião ou a Resende, e ali, quase no Grande Porto, o IPC (índice do poder de compra) pouco excede os quarenta por cento da média nacional.
Esse interior pode estar tão perto do litoral das festas do jet-set como o Concelho de Alcoutim, a poucos quilómetros do mais luxuoso Algarve: tem um IPC equivalente a quarenta por cento da média nacional. E percorrendo uma linha que se desenha pelo Guadiana, que inclui Barrancos, Mértola, Portel, Alandroal, é a mesma desgraça: nunca se atinge um IPC que se aproxime da metade da média nacional.
Abaixo dos setenta e cinco por cento da média nacional situam-se, se bem contei, duzentos Concelhos do continente português. Fácil é concluir que o valor médio em questão tem que resultar do facto de existirem outros que têm valores muito acima dessa média – mas estes dados não constam do mapa.
Certamente que o falado índice de poder de compra não mostra tudo. Mas permite, amargamente, reflectir neste país que a passos largos nos preparam: um pequeno território onde em vez de um desenvolvimento em malha homogénea, harmoniosa e solidária temos o abandono de oitenta ou noventa por cento do território, forçando à concentração da população e da riqueza nos restantes dez ou vinte por cento. Um país prodigioso, onde teremos em singular coexistência os problemas próprios das grandes concentrações urbanas com a problemática característica das vastas regiões desertificadas.
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