sábado, fevereiro 21, 2004

Antologia alentejana

Regresso aos poetas da pequena pátria alentejana com um poema do Conde de Monsaraz, publicado na sua “Musa Alentejana”, que me merece particular apreço.
Em primeiro lugar pelo valor do próprio poema: gente bem mais autorizada do que eu já lhe gabou a perfeição, e estou a lembrar-me de Couto Viana, que expressamente o referiu como exemplo numa crítica que publicou no “Tempo Presente” a propósito de Mário Beirão, ou de Azinhal Abelho, no magnífico “Cancioneiro do Vinho Português”, antologia publicada pelas “Edições do Templo”.
Depois, pela evocação sentida do mundo rural alentejano, do viver das gentes, dos dramas e misérias – e da força do canto, que unia e elevava, em formidável transmudação da dor em arte.
Não sei se existirá em verso ou em prosa um quadro mais vivo e autêntico do canto alentejano – é um Malhoa de Reguengos.


Os Bêbados

Os bêbados passam cantando nas ruas
Desertas da aldeia;
Recebem contentes, ao sábado, as jornas
E vão derretê-las à boca das dornas,
De noite, nas tascas, à luz da candeia.

Em chusmas, unidos, é vê-los no escuro
- Que até fazem dó! –
Espectros da fome, sair das tabernas,
borrachos, cantando, cambadas as pernas,
Os olhos mortiços e as bocas em ó ...

Um canta em voz alta; respondem-lhe os outros,
E cresce, enche o ar
Um coro arrastado, soturno, indolente,
E a alma do povo, parece que a gente
A sente cá dentro do peito a chorar!

Trabalham, moirejam de dia, e à noite,
Coitados, lá vão,
Fugindo à gleba, libertos do ancinho,
Embora haja fome, beber, porque o vinho
Alegra e é por isso melhor do que o pão.

Nas praças desertas abraçam-se em grupos,
Meu Deus, que tristeza!
E os braços lhes pesam mais leves nos ombros,
Que o lenho das dores, por esses escombros
Dos rudes calvários, nos ombros lhes pesa.

Os bêbados choram nas noites caladas
Cantando em segundas,
As queixas doridas, os ais e os lamentos
Que às vezes se escutam na leva dos ventos,
Na voz, no marulho das águas profundas.

O génio das coisas soluça naquelas
Tristezas ocultas,
E os tristes borrachos, cantando nas praças,
Sugerem tragédias, acordam desgraças
Que, ó génio das coisas, na treva sepultas!

Um canta em voz alta, respondem-lhe os outros,
E cresce, enche o ar
Um coro arrastado, soturno, indolente,
E a alma do povo, parece que a gente
A sente cá dentro do peito a chorar!