Manhã bissexta
Hoje acordei com a sensação de ter acordado. É estranha e diferente. A cabeça pesava e os olhos fugiam da luz, mas não como nos outros dias. Habituado a levantar-me com a impressão de quem não dormiu, tardei a perceber o que se passara.
Mas foi assim. Insensivelmente, durante a noite, tinha adormecido profundamente. Dormi quatro ou cinco horas de sono fundo, sem interrupção nem alerta. Não acontecia há anos, e o levantar de hoje teve um sabor esquisito. Um sabor de outros tempos e outros lugares, perdidos, e guardados, nas gavetas da memória.
Fiquei depois a olhar o sol, pelas janelas da sala. Pelas janelas da alma. Sol de Inverno, mas claro e luminoso.
Veio-me de dentro o som balançado de uns cantares de Portel que ouvi muitas vezes, um hino à vida que todos dias cai e todos os dias se levanta. “Já lá vem nascendo o sol/ já lá vem minhas alegrias/ nunca ele se faz velho / pois nasce todos os dias ...”
O cantar do Alentejo causa-me sempre o mesmo deslumbramento nostálgico, no som grave, que vem das profundezas da terra e arranha as profundezas da alma, e nas palavras, expressão simples de uma sabedoria imensa e milenar. Há anos, muitos anos, fiquei pasmado, a sentir, e a meditar, quando num grupo de cantadores de Moura o ponto arrancou assim: “O Sol é que alegra o dia/ Pela manhã quando nasce..../ Ai de nós o que seria/ Se o Sol um dia faltasse...."
Grande poeta é o povo!
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