quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Missão

"Decerto, o tempo de hoje oferece-nos uma face ingrata: divisões, sofrimento, corrupção, cobardia, mentira, materialismo, opressão, angústia, náusea, degradação. Mas não podemos reduzir-nos a retrato ou sinal destes tempos, devemos erguer-nos a signo e moldador, a artífices e propulsores, a condutores, enfim. Temos uma função de alquimia, compete-nos transmudar o ferro, o vil metal, em oiro, o metal precioso.
Recusamo-nos a ser dominados pela vileza do momento. Não conseguiremos, decerto, deixar de sentir, dolorosamente, os golpes da nossa época. Mas, como disse Nietzsche, "o mundo só tem o sentido que nós lhe dermos" e, à imagem de Deus de que somos imagem, temos de ser criadores, redentores e santificadores do mundo. A dor, o sofrimento, a provação atingem-nos? Mas é isso razão para uma obra sombria?
Junqueiro bem viu que assim não era, ao chamar à Dor a "mãe do Universo", ao descobrir no sofrimento das coisas e do poeta a brancura da "Oração à Luz", ao compor versos onde se ensina que, emergindo do sofrimento, "a carne exultará, transfigurada, / como nuvem escura em céu ligeiro / em lhe batendo a luz da madrugada".
Claros hinos luminosos e puros podemos cantar, se quisermos, se vivermos interiormente o desejo de claridade e juventude. É uma construção total, progressiva, ascendente e contínua. Total, porque de todos. Total, porque em todos os momentos. Total, porque em tudo. Na Arte, na Política, na Filosofia, na vida quotidiana, na crítica. Até na atitude religiosa."