quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Modernices

Quando eu era criança havia em Portel três médicos. Um era já velho. Os outros dois nem por isso. Com o tempo que passou entretanto os dois que não eram velhos envelheceram e já morreram. E o que era velho, embora mais teimoso e resistente, também já se foi. Mas como o meu pai tinha certa veneração pelo mais antigo, fiquei com mais recordações dele que dos outros.
Dos tempos de criança, as recordações prendem-se sobretudo com as minhas doenças, que lá me forçavam, bem contrariado, a recorrer aos seus serviços clínicos, devidamente acompanhado pela autoridade.
É que eu detestava médicos, hospitais e consultórios; e o senhor não se pode dizer que fosse simpático. Ao contrário, era impaciente, irascível e resmungão.
Ficou-me atravessado por muitos anos o agravo de certo desabafo, que humilhou e feriu fundamente o meu orgulho. Foi o caso de ao começar a consulta, após os cumprimentos e apresentação do problema, da responsabilidade do meu pai, ele me ter perguntado para abrir as conversações: - “então, o que é que tu tens?”
Eu, que estava ali submetido e contrariado, rosnei, com a cara daquele bichinho do zoo que toca a sineta: - “Não tenho nada!”
Ele não gostou, prosseguiu o que estava a fazer, creio que colocava luvas ou coisa parecida, e resmungou irritado: - “Não tens nada... nem juízo!”
O atrevimento caiu como uma ofensa grave na minha sensibilidade de garoto. Pareceu-me tão mal aquele desaforo de colocar em dúvida o são juízo com que o Criador me havia dotado, e que já então era para mim motivo de satisfação, que nunca mais lhe perdoei. Passaram muitos anos sem que me esquecesse da injúria.
Mas atrás de tempos vêm tempos e muito mais tarde encontrava o velhote resmungão, já desligado do serviço por força da idade, sem que a antiga animosidade me perturbasse o convívio.
Acontecia então com frequência que muitos antigos doentes que o encontravam, ou por distracção ou porque procuravam mesmo uma consulta de rua que os tranquilizasse das suas andanças pelos outros clínicos, acabavam a falar com ele sobre as suas doenças, a mostrar-lhe as receitas, os medicamentos, os relatórios, as ecografias, os electrocardiogramas, enfim, toda a parafernália dos agora chamados meios auxiliares de diagnóstico, e que não há muitos anos eram ou inexistentes ou impensáveis num remoto lugar da província.
O bom velho olhava curioso e interessado para tudo aquilo, os medicamentos com nomes que já não lhe eram familiares, os tratamentos que os seus antigos doentes iam fazer à cidade, a diversidade de instrumentos e de técnicas que lhe eram estranhas, e no fim concluía filosoficamente para os circunstantes: - “eles tratam-se à moderna, mas morrem todos à antiga...”
Ficou-me o axioma, como expressão de antiga experiência e vera sabedoria. Nunca mais o esqueci.
E eis descoberto o segredo que me faz sorrir e seguir tranquilo sempre que fazem reparo ao meu obsoleto reaccionarismo, o meu radical desalinhamento com o progresso, a minha insanável incompatibilidade com os tempos actuais. É sempre a máxima do Dr. Mendes que me vem à memória.
Deixá-los! Bem podem viver à moderna, esfalfando-se todos os dias a correr atrás da modernidade, a salivar, de língua de fora... no fim, morrem todos à antiga.