O Cante: origem e mistério
Já aqui tinha deixado umas impressões pessoais de Ramalho Ortigão sobre o cante tradicional alentejano, nascidas de uma estada na Vidigueira em 1888. Reproduzo hoje um excerto de Hipólito Raposo sobre o mesmo tema, nascido das suas observações em Beja, em 1944.
Fica aqui à atenção dos musicólogos cá da parvónia, e outros curiosos interessados.
“Ainda não se fez o estudo que estão reclamando a natureza e actividade destes corais espontâneos, geralmente constituídos por homens, alguns outros mistos, neles entrando quatro ou cinco raparigas, com vozes de maviosa clareza e suavidade (...)
Ninguém sabe como nasceram, onde se inspiraram, que escola tiveram estes aedos-campaniços que um rapsodo guia, dando o ponto, a dialogar com o coro ou a fundir-se com ele em harmoniosa orquestração.
Em filas ordenadas se deslocam, enlaçados pelos braços uns dos outros, para constituir solidário volume de órgão vivo, movendo-se com lentidão mais que alentejana, de olhos fechados os de maior transporte, para deixarem subir as almas harmonizadas até aos balcões dos castelos das nuvens e das estrelas.
No intento de surpreender a génese desta expressão de arte popular, a mais elevada de quantas temos, sempre se fala da Planície que é muda e queda, ou recorre-se aos milagres da Dominação Árabe, pela qual se encobre muita ignorância, ao atribuir-lhe a posse das chaves de todos os mistérios da nossa alma.
A quem os ouve desprevenido, os cantares de Beja logo revelam e impõem, a meu ver, o seu carácter tão religioso que muitas vezes as melodias parecem trasbordar das portas e fenestragem de grande igreja, em alta função de ofício divino.
Solene, respeitoso, ritual, é o andamento na rua, em que as filas se balançam de lado a lado, com o mais vagaroso compasso.
Os pés deslocam-se a oscilar em esboços coreográficos, como se por obediência a remota inspiração uma dança litúrgica se fosse ali executando para subir em pomposa solenidade a grande nave de uma catedral.
Se abstrairmos da letra, os temas cantados nunca são depressivos ou mórbidos. Nestas composições há estilo, passos de sólida construção musical, e para a completar e engrandecer muitas vezes ficamos à espera da inundação polifónica, do pleno domínio do órgão que não se chega a ouvir...
Dirão os musicógrafos se este caso de arte regional vai prender-se às remontadas influências do cantochão medieval, ou se bastará filiá-lo nas escolas de música que há trezentos anos floresceram em paços, igrejas e mosteiros do Alentejo, documentando e enobrecendo as aptidões e o génio dos Portugueses.
Se assim fosse, o Povo teria alterado os módulos, haveria introduzido variações, para criar estilo próprio, alheio ou rebelde a disciplinas da composição. Esse estudo deverá tentá-lo, e sem tardança, quem for competente, já que o problema não poderá esclarecer-se com simples conjecturas ou breves notas de interpretação literária.”
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