quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Soberania Popular

“A questão que muitas vezes me tem feito dar voltas ao juízo é a da soberania do povo. Havia sete séculos que se dizia que a soberania estava no rei. Em todo este espaço, Portugal formou-se em reino, ganhou poder, caiu, levantou-se e sempre se engrandeceu. Quem, notando estes acontecimentos, não via que a soberania posta em El-Rei está muito bem posta? Todavia, depois de 24 de Agosto começou a dizer-se que a soberania residia essencialmente na Nação, isto é, que a Nação não é nação sem ser soberana! Confesso que, ouvindo esta doutrina, senti em mim certa comoção estranha, e tal qual se sente pela aparição de fenómenos imprevistos, espantosos, e anteriormente ignorados.
Agora sim (dizia eu), agora é que eu sou gente. Se a soberania é tão doce que para obtê-la se têm sacrificado desde o Dilúvio Universal contos e contos de vidas, que maior ventura que obter agora um quinhãozinho de soberania às mãos lavadas?
Mal parece que um tenha tudo, e outros nada. Se a soberania é um bem, reparta-se por todos, e o quociente dirá quanto cabe a cada um. Com este quinhãozinho de soberania estava eu mais contente que um rapaz com o seu pião, e me lisonjeava de poder dispôr de tão rica aquisição e reparti-la por minha mulher e filhos. Minha mulher, logo que o soube, não cabia em si de alegria, e tal ufania a tomou que já se supunha uma rainha pequena, que lhe enjoava a roca e a costura, já fazia de soberana entre as criadas, e por tal maneira se descuidava do governo da casa que eu me arrependi de lhe ter revelado o segredo.”