Tempo Presente
No nosso país, existem, desde há muito, senão desde sempre, duas tendências que, em certas alturas, se agravam, monstruosamente. Uma delas baba-se perante tudo quanto o filhinho faz, proclama que nada há melhor do que as coisas geradas em Portugal, alaga-se na nossa “infalível genialidade e genuinidade”, não arreda pé do que já lhe deram todo feito, não abre nem uma greta a qualquer brisa exterior ao seu tuguriozinho, ao seu cantinho, ao seu torrão de açúcar natal... A outra tendência sacode a poeira das sandálias na fronteira da pátria e volta-se lá para fora e cospe cá para dentro; considera que somos irremediavelmente tacanhos e inferiores, ou que nada de bom soubemos ou podemos criar; supõe que português é sinónimo de provinciano e provinciano é sinónimo de rotineiro, papalvo, inferior, primitivo e tosco; entende que só lá fora nascem o génio e a beleza e a inteligência e a arte e o bom-gosto e a inspiração e o espírito; acredita que quanto a estranja propagandeia e exalta é, realmente, magnífico e original e grandioso e renovador e perfeito. Para certos senhores o que é português é implicitamente o supra-sumo; não só temos o que há de melhor, como até possuímos tudo. Para outra gente, somos uns miseráveis e uns incapazes; nada há em que sejamos tão bons como os outros ou melhores; cada epígono estrangeiro vale mais do que os nossos autores cimeiros ou do que uma cambulhada dos nossos criadores. E assim, para os segundos, em nada se nos pode descobrir uma ponta de génio próprio, uma personalidade, uma visão, uma alma, uma forma específicas; enquanto para os primeiros o estrangeiro representa o demónio, a desnacionalização, a perda da nossa adorável ingenuidade. Portuguesistas “históricos”, nacionalistas “chauvinistas”, museus xenófobos, esburgam o osso fóssil das nossas glórias passadas em vez de vivê-las continuando-as, e ganham banhas a deglutir e requentar os restos dos restos dos restos dos temas portugueses... Na rádio, na televisão, no cinema, no teatro, nas revistas, nas conferências, farejam e requerem e exigem coisinhas portuguesas, exploração portuguesa, isolamento português. E quando se pretende informar o nosso país das criações universais do espírito, inserir a nossa pátria na Europa e na Atlanticidade e no Mundo, há logo protestos, desconfianças, avisos, recusas e ataques. Do outro lado, estão aqueles que desprezam, orgulhosamente, aquilo que vem de Portugal, como se viesse de negros selvagens ou pior ainda. E então ignoram o que aqui se inventa e produz, ou desdenham disso. E então aconselham a emigração. E então reviram os olhos de encantado aplauso ao evocarem as obras estrangeiras.
Nós, por nossa parte, desejamos que se valorize o que é português e que se conheça o que os outros países geram e dão ao panorama universal. Pretendemos que se conheçam as obras do mundo e que, com inteira informação e consciência, critiquemos, seleccionemos, hierarquizemos e amemos. Queremos que se assimile, com o nosso génio próprio, a contribuição dos outros povos para o património comum. Modernidade, portugalidade, actualidade não significam, para nós, ignorância ou alheamento da antiguidade e da permanência, nem dos outros países, nem do ecuménico e universal. E europeísmo ou até cosmopolitismo não significa desprezo da peculiar e originalíssima alma portuguesa.
GOULART NOGUEIRA
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