segunda-feira, março 29, 2004

Há trinta e cinco anos!

Há trinta e cinco anos, mais uns meses, o meu amigo sulcava os mares, rumo ao Índico, levando nos olhos um cais de Lisboa. Natércia escreveu então:

"São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos,
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Ás vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.

Grandes barcos os levam, lentamente..."


A bordo, os olhos cheios de azul, o meu amigo escrevia:

"Onde esse lenço se casa,
No cais do ocaso, aos que vão,
Há, em suspenso, uma asa,
Há uma asa em cada mão.
E em bando, todas, à uma,
Acenando, em onda, aos seus,
Galgam, patéticas, a espuma,
Por entre a bruma e o adeus.

Imemorial sagração
D'horizontes azulados.
No cúmulo de um cântico de mágoas,
Portugal naval cristão:
Naus como arados
Sobre o túmulo atlântico das águas...

Do areal à embarcação,
Por sonhos não navegados,
Maioral da solidão,
O vento, a favor, dá recados...

- Perguntas, amor, quem são?
- Soldados, amor, soldados.

Sinal de sal, no suão,
A bússola do sol, pela costa,
À contracosta os conduz.
Vão em sombra. E às sombras dão
Uma resposta de luz!


Ontem apagou-se a luz que havia nos olhos do meu amigo. Vai a enterrar, esta terça-feira, em Parada de Gonta.