quinta-feira, março 25, 2004

Lembrando Manuel Laranjeira

Para usar linguagem actual, o poeta Manuel Laranjeira era um ganda maluco, de vida breve e intensa, natural da terra do buliçoso rapaz da “Nova Frente”.
Teve o seu tempo de notoriedade, na nossa pequena república das letras, pela sua obra literária e sobretudo pela projecção que Miguel de Unamuno deu à sua vida e à sua obra – e à sua morte.
Hoje creio que estará de todo esquecido. Todavia, quando em 1977 passou o primeiro centenário do seu nascimento, publicou o Rodrigo Emílio, que não sendo santo nenhum é muito da devoção do “Nova Frente”, um artigo evocativo que, já agora, fica aqui para leitura e proveito dos amantes das belas letras. Para o BOS, claro.

NO CENTENÁRIO DE MANUEL LARANJEIRA

Aquela soturnidade e toda aquela melancolia que - mormente ao anoitecer - se apoderavam do espírito de Cesário, e que nele despertavam "um desejo absurdo de sofrer"; esse "vago sofrer do fim do dia", a que já tão sensível se tinha mostrado Camilo Pessanha, na sua CLÉPSIDRA, experimentou-os Manuel Laranjeira, com redobrada intensidade, enquanto andou a Penar por este mundo. E ninguém (entre nós, pelo menos) terá sabido apreender e exprimir, até hoje, tão supremamente como ele, e em base de tão derrancada autenticidade, todo o amaríssimo travo dessa nevrose, de tónus poentino e de feição crepuscular, que o trabalhou por dentro a vida inteira; que lhe macerou as horas todas da sua abreviada e patética existência; que jamais o poupou ou lhe deu tréguas; que o mortificou, implacavelmente, até à morte!
Laranjeira vem a padecer, essencialmente, de uma sorte de "outonalidade" espiritual de fim-de-século, extremamente doentia e mórbida, que se propaga a tudo aquilo que o circunda, e que em tudo projecta colorações pressagas de bruma e adeus; que a tudo transmite, em suma, um clima de indizível desolação e uma sempre deprimente tonalidade ambiental: "Anda uma luz de cinza pelo espaço"; "(...) Uma luz espessa, húmida, suja, parda como lama. Há uma tristeza tediosa que se exala do céu e da terra e se infiltra nas cousas e na alma. A terra, as nuvens parecem uma grande esponja cor de cinza, embebida em lama, em luz viscosa, em tristeza, e sobretudo em aborrecimento".
Antes de mais nada, há, em Laranjeira, um desapego mortal de tudo e de todos; todo um trágico indiferentismo! Glosando Gedeão, dir-se-ia que, a seus olhos, "Tudo morre em tédio e em nada,/ Tudo maça. Tudo enfada./ Tudo pesa. Tudo cansa". Clama Laranjeira: "Só me lembra dizer aquilo do Herculano - isto dá vontade de morrer. Sinto que tudo é aborrecido; se me dissessem que o mundo ia desabar, encolhia os ombros. Estou como aqueles que, não tendo nada que perder, não se importam que tudo se perca".
Entretanto, na sua vida, seriam sempre seis horas da tarde: "A tarde lenta cai. E cai também/ Uma melancolia venenosa,/ (...) que se não sabe de onde vem ...// E vem como uma sombra vagarosa/ Que chovesse dum céu crepuscular.../ Vem subindo da terra dolorosa/ Como um grande dilúvio de pesar,/ Como um olhar de dor silenciosa/ Que tentasse subir para as estrelas/ E ficasse disperso pelo ar..,/ E vem do fundo de alma... Perscrutasse/ a gente o coração p’ra sentir bem/ Que é lá no fundo de alma que a dor nasce/ E é de lá sobretudo que ela vem...
Sim. Provêm sempre d'além alma os suores frios desta angústia. Fortes razões há-de ter tido Unamuno para, de resto, asseverar- "Fué Laranjeira quien me enseñó a ver el alma trágica de Portugal y (...) no pocos rincones de los abismos tenebrosos del alma humana".
A juntar a tudo mais, acusa o poeta, sensivelmente, a falta de Deus: "(...) o Deus que eu pretendera/ destronar, nunca existira:/ era uma louca quimera/ uma orgulhosa mentira". E, à falta de Deus e do resto, assalta-o, a cada passo, “o desejo de chorar/ Baixinho, docemente, / Sobre o peito de alguém... que não existe".
Um dia, não pode mais, - e vá de alojar em si a bala libertadora!
"Em Portugal" – escrevera Laranjeira a Miguel de Unamuno uns tempos antes -- "chegou-se a este princípio de filosofia desesperada - o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.
Chegámos a isto, amigo. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram - de "crer".
Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a crença - na morte libertadora.
É horrível, mas é assim
".
Assim continua a ser, a estas horas...
Quanto a ele: "Matou-o a Vida. E, ao matar-se, deu vida à morte”, há-de dizer, ao depois, Miguel de Unamuno, na hora da sua morte.
Uma última vontade exprimiu Laranjeira, apelando in extremis para a mãe:
"Mãe - é um desejo esquisito este meu: plante uma roseira sobre a minha sepultura. Depois, quando me quiser falar, vá lá beber o perfume das rosas: que esse perfume é a minha alma."
E, aqui, pergunto eu, a terminar - é ou não é verdade que "esta pequena maravilha" poderia ter saído, nas calmas, do punho de Almada Negreiros, e mormente das páginas d' "A Invenção do Dia Claro"?....
Passe-se, portanto um atestado de plena sobrevivência literária, e de inteira modernidade estética, ao autor de COMIGO. Tomara muito coevo estar assim tão vivo como ele!... O que quer dizer que a obra poética de Manuel Laranjeira goza, a título póstumo, de uma saúde de ferro!

RODRIGO EMÍLIO