sexta-feira, março 19, 2004

Mais do Abílio

Insisto na poesia do velho Abílio Guerra Junqueiro, agora para trazer um dos seus mais comovidos e sentidos poemas.
Repare-se na nostalgia dolorida que assombra o poeta na hora de completar o círculo, voltar ao porto onde iniciara a peregrinação, regressar a Ítaca e olhar o futuro mirando o passado. Mas para o futuro nada mais se alcança que não a certeza do fim, e do passado já nada resta senão a imensa nostalgia do que se perdeu.
Dizia António José Saraiva com ironia que Junqueiro era "um grande poeta menor" - um poeta menor, sim, como entendem os críticos vulgares, mas um grande poeta menor...
Aqui fica a beleza dos mais belos versos do poeta de Freixo-de-Espada-à-Cinta.

REGRESSO AO LAR

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

Guerra Junqueiro