sábado, março 13, 2004

A natureza e os homens

Em certa passagem Jean Jacques Rousseau descreve o seu êxtase perante a natureza. Como é belo passear pelos campos, diz ele, observar as perdizes a voar graciosamente, pousando de árvore em árvore ...
Como sabe quem já viu, as perdizes não pousam nas árvores, e pouco voam. Na verdade são aves nada dotadas para o voo, deslocam-se normalmente andando, pé no chão, e só levantam voo quando acossadas por alguma ameaça; e mesmo nessa altura não são capazes senão de um voo desengraçado e de curto alcance, voltando a pousar no chão um espaço mais adiante.
Rousseau não podia saber isso, porque certamente nunca viu perdizes a não ser no prato, onde a ave em causa sempre gozou de justo prestígio. E saiu-lhe essa tirada porque provavelmente conhecia das suas utilizações decorativas as penas de perdiz, desde há muito apreciadas pela sua beleza pelos pintores e pelos chapeleiros.
O filósofo genebrino, como acontecia com os demais filósofos da moda seus contemporâneos, era um elegante de salão, e teria horror em passear-se efectivamente pela natureza bruta. O seu conhecimento da natureza ficava-se pelos jardins bem tratados da aristocracia - onde tudo se lhe apresentava racional e harmonioso.
Todavia, nunca a filosofia exaltou tanto a lição da natureza, invocou tanto os ditames da natureza, e combateu tanto o que proclamou como anti-natural, como com Rousseau e seus confrades. Tudo na filosofia do século das luzes procura apoio no que chama de natural. Assim, a sua visão do homem era justa e boa, porque era conforme à natureza humana; e as demais concepções más e injustas porque anti-naturais. As suas visões sobre a sociedade eram as que a natureza das coisas impunha, e as outras eram tributárias das fontes de infelicidade que as instituições, contra a natureza, tinham trazido às sociedades humanas.
A família, a propriedade, o Estado, a Igreja - tudo fontes da desgraça - eram imposições com que a sociedade manchara a liberdade, a igualdade, a bondade e a fraternidade que marca a natureza dos homens.
Analisando agora friamente essas proposições, é fácil observar que a pretensa "naturalidade" de tais convicções não passava de um conjunto artificioso de suposições, de mera construção intelectual baseada num profundo desconhecimento da natureza e dos homens. Rousseau descreve admirativamente o "bom selvagem" e as suas virtudes porque nunca viu nenhum. Exactamente como nunca observou nenhuma perdiz em natureza.
Todavia, as certezas transmitidas por esses filósofos impregnaram de tal modo a cultura do Ocidente que se tornaram omnipresentes, como axioma assente e indiscutível, em todos os discursos oficiais, ainda hoje aceites e correntes.
O pensamento comum deixou de as questionar, e tornou-se heresia pôr em dúvida verdades tão basilares.
Assim, os homens nascem naturalmente livres. Os homens são por natureza iguais. Os homens são naturalmente bons, como o demonstram os que se mantiveram no estado selvagem.
Libertados das cadeias sociais, que adulteram e corrompem essa sua natureza de seres livres e iguais, os homens manifestam a sua bondade natural e espontânea, em sociedades caracterizadas pela fraternidade geral.
Eliminando todas as desigualdades, todos os limites à plena manifestação da liberdade individual, obtém-se como fruto a livre associação dos indivíduos em comunidades onde cada um perseguirá o seu quinhão de felicidade, para felicidade de todos. Liberdade, igualdade, fraternidade. Ámen.