quinta-feira, março 18, 2004

Pessoa e o provincianismo

Sendo este um obscuro blogue de província, justificadamente encarado com superior desprezo pela gente civilizadíssima que anima os eventos (happenings...) que fazem a actualidade, encontrou hoje ânimo na leitura de um conhecido trecho de Fernando Pessoa, que lhe soube a maná dos deuses.
Com a sua perspicácia analítica Pessoa traçou o retrato implacável dos nossos cosmopolitas de ontem e de hoje. Ora façam o favor de ler, e depois digam-me se não os reconheceram logo.

"Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num sindroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. 0 facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
0 provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela - em segui-la pois miméticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
0 síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes:
o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração plo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característica que imediatamente distinga o provincianismo, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas .
(....) 0 amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. "