terça-feira, abril 13, 2004

Etnografia e religiosidade popular

O dia 25 de Abril é no calendário religioso dedicado ao evangelista São Marcos. E na devoção popular este santo é vulgarmente associado à protecção de uma classe específica de necessitados: é o padroeiro dos cornudos. Essa devoção originou práticas ingénuas de religiosidade popular, umas mais sacralizadas e outras mais profanas, por todo o território nacional. E também deu origem a tradições mais maliciosas, como acontecia em certos locais dos Açores onde na noite em questão grupos de rapazes costumavam munir-se de chocalhos e outros artefactos barulhentos e ir fazer algazarra junto das casas daqueles que a vox populi apontava como detentores de tal ornamentação, por força de virtudes domésticas. Como então ainda isso não era tido como hábito arejado, progressista e liberal, por vezes a coisa descambava porque os visados não gostavam e reagiam.
Em Monforte do Alentejo também era tradição festejar o dia de São Marcos, em festa que invocava a sua protecção aos animais de cornos. António Sardinha evoca desta maneira essa festividade tradicional da sua terra, numa carta a Almeida Braga, então exilado na Bélgica:

"Queridíssimo Luís: Escrevo-te em vinte e quatro de Abril, em véspera do Senhor São Marcos, um dos quatro que disseram da vida de Jesus e padrinho dos bois e dos boieiros de toda a Cristandade. Amanhã, perto daqui, numa engalanada ermidinha, à hora da missa, por entre os fiéis, um novilho de dois anos entrará pela nave acima até ao altar-mor. «Entra, Marcos!» - Ihe gritarão os mordomos da festa, que com varinhas o irão tangendo, que o animal se poluiria se as mãos humanas o tocassem. «Entra, Marcos!» E junto aos degraus do tabernáculo, com as hastes enastradas de fitas e de ervas de cheiro, a rés, em vez de tombar sob o cutelo sagrado, em nome da verdade receberá a bênção da Igreja e nos cornos se lhe cantará o Evangelho do dia. «Entra, Marcos!» E o engelhado Topsius que habitava dentro de mim acaba de descobrir que essa festa, que o Cristianismo conservou e santificou, tem raízes milenárias, descende da festa do Touro que uma civilização pre-árica bronzífera, espalhou por toda a Europa. Mr. Homais rir-se-ia da ingénua solenidade e aproveitar-lhe-ia a origem para atacar a pobreza criadora do Cristianismo e a mentira das Religiões. Eu, como homem que estuda, solidifico com o facto a minha crença vendo nele um sinal claro dessa curva ascensional do homem primitivo para a Perfeição, que é Deus. «Entra, Marcos!» E hoje as ladainhas saem pelos campos - saíam - a rogar ao Céu pelo renovo primaveril, pela messe que se aformoseia, pelos frutos que despontam. Como Portugal estará lindo! - exclamava na tua carta a tua nostalgia. - Como Portugal está lindo e como ele te manda saudades, meu amigo! Floresce o rosmaninho, a planta que soalha as igrejas em Quinta-feira de Endoença e que, assistindo à cena do Calvário, perpetuou na sua austeríssima flor o sangue inocente do Cordeiro. Como Portugal está lindo! E quando eu olho o tapete das searas que ante os meus olhos se desenrolam por dez léguas infinitas, eu penso naquele romance de Melchior de Vogüe, - Les morts qui parlent. A verdadeira França, ai! não é a que se estorce e debate no Palácio Bourbon, - não é a que governa e se divide em programas políticos irrealizáveis e perturbadores, mas a que trabalha e canta sempre, - aquela que encolhe os ombros na ignorância do homo-publicus que aleiloa, aquela cuja seiva eterna dá filhos à Pátria e dinheiros à bolsa sôfrega do Estado. Lembras-te ?"