A ginjinha
Estando a alma a puxar para a nostalgia, tudo vem à tona, subindo lá das profundezas da memória.... são cheiros, são sabores, são visões, momentos, coisas, sensações, pessoas...
Surgiu-me agora, não sei se no paladar, se no olfacto, se nas imagens de outro tempo, uma súbita saudade da ginjinha. Saudade, sim, segundo o sábio dizer de Pascoaes – uma velha recordação a actualizar-se num novo desejo... de ginjinha, a mais lisboeta de todas as bebidas. Ainda haverá ginjinhas em Lisboa?
Baila-me no ouvido a voz de Hermínia Silva, glorificando a "Tendinha" por entre o repenicar de guitarras – “velha taberna/ nesta Lisboa moderna/ és a tasca humilde e terna/ que manténs a tradição..."
Quando eu deixei Lisboa já a velha loja do Arco do Bandeira tinha sofrido o assalto plastificante da modernidade – já não era a velha taberna “de aspecto rasca e banal”, nem se podia mais cantar que “na história da bebedeira/ aquela tasca velhinha/ é um padrão imortal”.
Mas se a "Tendinha" tinha sucumbido outros templos da pinguinha permaneciam orgulhosos e imutáveis. Logo do outro lado do Rossio, no Largo de São Domingos, uma casa da especialidade exibia a sua filosofia, registada em azulejos antigos por entre garrafas do precioso líquido vermelho escuro: “Dona Fedúncia da Costa/ delambida e magrizela/ fez de ser tola uma aposta/ diz que ginginha nem vê-la/ porque coitada não gosta// O irmão que sabe a virtude/ d’esta divina ambrosia/ é gordo como um almude/ bebe seis copos por dia/ por isso goza de saúde”.
Para ilustrar a lição os azulejos representavam graficamente os dois irmãos opostos, facilitando enormemente o trabalho de tradução da versalhada que alguns turistas passantes por vezes demandavam ao indígena mais prestável.
Estranhamente, todas as ginjinhas eram parecidas entre elas; espaços acanhados, cheios de garrafas e boiões, pequeno balcão oferecendo-se ao povo. Havia mais, ali pela Baixa. Havia na Rua das Portas de Santo Antão, e continuando a caminhar encontravam-se também na Avenida da Liberdade, perto do elevador da Glória, e mais para a frente, para quem seguisse por esse lado em direcção ao Parque Mayer ou à Praça da Alegria – se não começasse a trocar o passo entretanto.
A lembrança da ginjinha é afectiva, gustativa, olfactiva – e visual, que aquela cor quente enche os olhos como o coração. Mas ainda haverá ginjinhas em Lisboa?
Sabe-se lá... quem tinha razão mesmo era a Amália: “dar de beber à dor é o melhor/ já dizia a Mariquinhas”.
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