Guantanamo Bay
Por estes dias reina o embaraço na Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Cuba, após ter sido condenada nessas matérias, apresentou por seu lado uma proposta, que todos em privado qualificam de moderada e juridicamente inatacável, solicitando a realização de um inquérito ao famoso local, a efectuar pelos habituais inquiridores sobre a tortura e a detenção arbitrária.
Os delegados ocidentais não querem dizer que sim, para não desagradar a quem se sabe, nem que não, tão evidente se apresenta a lógica do pedido, decalcado de muitos outros bem conhecidos. Prevê-se portanto uma não-decisão, uma qualquer resolução de adiamento.
Mas mais importante do que este é o debate iniciado na mais alta instância judicial americana sobre a candente questão: têm os prisioneiros de Guantanamo algum direito face ao ordenamento jurídico da América, podem recorrer aos tribunais americanos, ou como defende o poder político eles situam-se fora da jurisdição dos tribunais, numa zona de não-direito?
Como reconhecerá um estudante de Direito, este debate é extraordinário: a personalidade jurídica define-se usualmente como a susceptibilidade de ser titular de direitos. A prevalecer nos tribunais americanos, como jurisprudência oficial, a doutrina defendida pela administração, negando o "direito ao direito" a esses detidos, estaremos perante uma situação que é efectivamente de recusa da personalidade jurídica a uma categoria determinada de indivíduos. Ou seja: não está defendido, pelo menos que se saiba, que não se trata de seres humanos; mas defende-se que estes humanos em concreto não têm direitos face ao ordenamento jurídico americano, situam-se fora do âmbito de aplicação deste - em suma, não têm personalidade jurídica.
Trata-se de uma construção que não era conhecida desde os tempos romanos: a nossa civilização tinha evoluído, desde a cristianização operada no direito romano, de modo a fazer coincidir a personalidade jurídica com o próprio ser humano, com a própria pessoa física, o indivíduo. Deixou de haver estrangeiros ou escravos, no sentido em que os concebiam os latinos. Só as pessoas colectivas carecem de reconhecimento para o serem; a personalidade das pessoas singulares depende apenas do nascimento completo e com vida, como reza o nosso Código Civil.
O embaraço gera sobre estes temas um pesado silêncio. Mas a verdade é que Guantanamo está aí, como um elefante no meio da sala, que toda a gente sabe que lá está mas toda a gente quer fingir que não vê. Enquanto for possível.
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