Um retrato pessoal
Umas palavras que escrevi ali atrás podem ter dado a ideia de sofrer eu de forte embirração contra o chamado "professor" José Hermano Saraiva. Sinto-me por isso obrigado a rectificar: não estou afectado de tal aversão. Eu até acho graça ao homem, e até encaro com simpatia os seus inegáveis dotes de comunicador e o meritório trabalho de divulgação que representa a sua obra televisiva. Cessa aí, obviamente, o meu apreço - que como "historiador" não pode ele ser levado a sério (lembro-me sempre da inesquecível fórmula com que Fernando Jasmins Pereira caracterizou as suas divagações nessa solene condição: - "a história vista pelo buraco da fechadura").
Descontando isso de não ser professor nem historiador, reconheço que se trata de um talentoso moinho de palavras - e que tal mérito lhe deve ser reconhecido.
Os meus engulhos têm a ver sobretudo com o carácter, ou com a falta dele... a prodigiosa capacidade de pela palavra se manter em tranquila navegação seja qual for o vento que se faça sentir.
E não resisto a contar uma estória pessoal, uma deliciosa estorinha que sem ser de ficção ultrapassa as mais fantásticas criações dos mais imaginativos autores. E contém na sua simplicidade o retrato de corpo inteiro do agora octogenário Dr. Saraiva.
Não vou referir o seu épico discurso como orador oficial das cerimónias do 10 de Junho de 1966, no apogeu da sua devoção a Salazar, nem vou falar do seu precoce fascismo - aos 16 anos, ainda no Liceu, já se fez notar nas fileiras da efémera Acção Escolar Vanguarda, que antecedeu a Mocidade Portuguesa e breve caminhou para o redil do regime.
A estória a que me refiro vivi-a eu num dos anos oitenta do século que passou. Fazia eu então parte de uma instituição oficial, que não posso identificar, onde por vezes se realizavam umas conferências com pretensões culturais, por personalidades convidadas, segundo um critério que se relacionava com a sua notoriedade pública. Chegados a um certo dia 30 de Novembro, à noite, houve mais uma dessas conferências, promovida pelos responsáveis máximos de tal instituição, e o convidado que se apresentou perante o auditório era nem mais nem menos que o espantoso Dr. Saraiva.
Estavam presentes, rigorosamente, 138 a 140 pessoas, e creio que muitos se lembrarão. O Honesto Saraiva, como também já foi conhecido, lá foi apresentado superlativamente por quem o tinha convidado, e depois botou faladura.
Neste ponto atingimos o essencial desta narrativa: o método do Dr. Saraiva. Tudo muito simples: antes de abrir a boca ele absorve o ambiente. Ausculta os ventos dominantes. E depois põe o moinho em funcionamento. Sempre com agrado geral - pois claro!
No caso concreto, ele tinha razões para crer, pelo que sabia de quem o tinha convidado, de quem o rodeava na mesa de honra, e por outros sinais da casa, que estava face a um público de sensibilidade esquerdizante. E vai daí vá de puxar pela verve e pelo sarcasmo, de mistura com a autorictas do historiador, para fazer chacota com a expansão portuguesa, pôr a ridículo a historiografia valorativa de feitos e heróis, arrastar pela lama as misérias e crimes que ficaram a marcar a lusa presença pelo mundo... tudo com óbvio sucesso, e saída em glória com os louros de avançado e progressista intelectual rendido às duras verdades.
Fui dali para casa era já noite avançada, extasiado face às capacidades miméticas do grande Saraiva. Mas o melhor estava eu ainda para ver. Na manhã seguinte era 1º de Dezembro, que como se sabe é feriado nacional e nesse ano calhou a um sábado. Saí de casa para cumprir o ritual que durante muitos anos mantive no 1º de Dezembro: nessa manhã às 11 horas perfilei-me perante o monumento aos Restauradores, em breve homenagem, depois caminhei até à Sé onde assisti à Missa solene em memória dos ditos Restauradores, passei ainda no Palácio da Independência a cumprimentar alguns amigos da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. E finalmente dirigi-me para o almoço.
Durante anos a fio, estivesse onde estivesse, não falhava o almoço anual da LAG (Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa), em todos os dias 1º de Dezembro. Era um ritual de fidelidade e de celebração em que não queria deixar de marcar presença. Na ocasião a que me refiro procedi como de costume, e após arrumado no sítio que me coube, passada a confusão dos cumprimentos e abraços, reparei no convidado de honra: o José Hermano Saraiva!
Cabe aqui explicar que estes almoços tinham sempre um convidado de honra, a quem competia o discurso principal, escolhido de entre as pessoas que tinham na sua trajectória passada uma ligação marcante à Mocidade Portuguesa (no ano seguinte creio que foi Baltasar Rebelo de Sousa).
Ainda mal refeito da noite anterior, aguardei pelo discurso de Saraiva. Uma vez todos devidamente almoçados (também aqui estavam presentes cento e cinquenta e tal pessoas, e algumas estarão lembradas disto), o presidente da sessão (a presidência pertenceu sempre a Luiz Avillez) proferiu algumas palavras e introduziu o grande orador - o célebre Prof. Saraiva, o ilustre ex-ministro de Salazar...
Nem queiram os senhores saber! O celebrado homem público levantou-se, fremente de emoção. Pigarreou, como é próprio das grandes almas em transe comovente. Respirou fundo. E arrancou das profundezas do seu ser um discurso de exaltante evocação da Mocidade Portuguesa, da beleza imorredoira dos seus princípios, da grandeza de Salazar, da sua honra e da sua fidelidade eterna, de servidor apaixonado do ideal que ali nos reunia...
Foi de levar às lágrimas os nostálgicos e sentimentais auditores! E saiu em triunfo, embalado na admiração geral.
O único dos presentes que o tinha escutado doze horas antes era eu...
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