Sevícias à portuguesa
Já depois de ter chamado a atenção para a sua existência, resolvi transcrever parte do artigo/depoimento de Walter Ventura publicado hoje em "O Diabo". Sublinho a sua relevância, até porque o Walter não é dos que falam muito - na verdade não gosta nada de andar por aí a exibir as vísceras, como ele diria.
Outros poderiam continuar, como é o caso de José António Veloso, aludido no texto embora o Walter não se lembrasse de mais precisa identificação (creio que os alunos da Faculdade de Direito de Lisboa o identificarão mais facilmente). José António Veloso nunca até hoje publicou uma linha sobre este assunto.
Também seria interessante que outras pessoas, e estou a lembrar-me de um certo psicólogo que há pouco tempo foi candidato à Câmara de Cascais, prestassem o seu depoimento. O Walter, preso havia muito tempo e ainda durante bastante tempo, não podia então saber de tal, mas o referido actual psicólogo e então Capitão Dinis de Almeida esteve presente e participou pessoalmente nos factos ocorridos no Ralis e de que o Walter só viu os resultados, quando lhe apareceram em Caxias os indivíduos de maca e ensanguentados a que se refere, sobretudo o Marcelino.
E não foi o único oficial do Exército a ter co-autoria nessas proezas.
Mas fico por aqui. Já estou demasiado mal disposto, e já dei contributo bastante para a campanha de "O Acidental". Leiam o excerto das memórias do Walter, que é prosa educativa à brava.
"De repente, não percebi bem como, a questão das sevícias praticadas pelos nossos admiráveis revolucionários militares aprilinos apareceu à luz do dia.
Uma chatice, a enodoar uma revolução tão casta e tão incruenta que obrou daqueles bons frutos através dos quais é possível aquilatar a casta da árvore mãe.
Cá por mim, que tive a honra prazerosa de passar dois anos e pico nos cárceres da liberdade, a questão já estava esquecida, salvo quando, em encontros com amigos velhos desses tempos, recordamos peripécias e inépcias dos "capitães de Abril" que tivemos o gosto de conhecer - e gozar- nos bons tempos do prec no prato.
E foi, de facto um prato.
Verdade seja que alguns dos presos da liberdade se deram mal com quem lhes saiu na rifa. Lembro-me de ver o Marcelino da Mata - um herói com Torre e Espada ganha no campo da honra e não numa cerimónia do 25 de Abril em que emparelhasse com uma qualquer D. Isabel do Carmo - entrar de maca no Forte de Caxias. Com ele vinham mais uns dez presos que haviam passado uns oitos dias no Ralis, nunca se apurou por que razões.
Eram todos pessoas ligadas, directa ou indirectamente à Guiné. Curiosamente, só dois ou três ainda estão vivos, tendo a maioria morrido na flor da idade.
Um deles, o meu amigo Coelho da Silva, um fuzileiro corajoso se bem que um tanto louco, fora caçado com a mulher, em fim de gravidez, em plena Praça da Figueira. A mulher, já não sei se a caminho do Ralis se dentro do simpático quartel, levou um pontapé na barriga que lhe provocou um aborto instantâneo. Um "jeep" transportou-a até às imediações do Hospital de São José, onde foi abandonada. 0 Coelho da Silva apenas foi sovado, durante alguns dias até ser levado para Caxias.
À minha cela foi parar um moço de vinte e poucos anos, licenciado em Direito e filho de um juiz que estava numa cela ao lado. Não recordo os nomes, apenas o apelido: Veloso. Contou-me, o que aliás me foi confirmado pelos restantes membros do grupo que acabei por conhecer graças a mudanças sucessivas de cela para cela, que durante dias tinham sido torturados, pai frente ao filho, amarrados a duas cadeiras. 0 pai já dobrara os 60 anos e sofria do coração.
Os dois que chegaram em pior estado foram o Marcelino da Mata que esteve sujeito a choques nos testículos e que tinha ferimentos graves num joelho por lhe terem dado pontapés exactamente onde tinha alojados estilhaços de granada e um outro indivíduo - de momento não recordo o nome e não tenho à mão os apontamentos que então fiz - que fora encarregado de um destacamento das Obras Públicas na Guiné, chegou-nos de maca, apenas vestido com umas cuecas ensanguentadas e com o corpo coberto de ferimentos.
Em Caxias também houve alguns casos interessantes. Recordo que numa dada altura, fui de castigo para uma cela onde estava um homem dos seus 70 anos que na juventude pertencera episodicamente à Pide e mais tarde enveredara por outra profissão. Chamava-se Dá Mesquita e oscilava entre períodos de calma, durante os quais se mostrava pessoa educada, de fino trato e bastante simpática e outros de terrível excitação em que me era penoso suportá-lo.
Contou-me repetidamente que um dia fora levado até ao pátio interior do fortim e, com todas as regras do cinema de mau gosto, amarrado, vendado e encostado ao paredão. Os soldados que o acompanhavam, alinhados à sua frente, receberam ordens de preparar as armas, manobraram as culatras e dispararam à voz de fogo.
É verdade que dispararam para o ar mas foi demasiado para o pobre homem que nunca mais conseguiu recuperar da gracinha.
Não foi a única simulação de fuzilamento que os dignos militares revolucionários engendraram para se divertirem um bocadinho."
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