terça-feira, junho 22, 2004

Abortos, julgamentos, recusas e garantismos

O julgamento das três mulheres que são acusadas do crime de aborto, em Setúbal, foi hoje suspenso, em princípio até 6 de Julho. O advogado de uma das arguidas apresentou no Tribunal da Relação de Évora um incidente de recusa da juíza encarregue de julgar o caso. Para o advogado de defesa da ex-enfermeira parteira acusada da prática de abortos, a sua constituinte "não pode confiar na imparcialidade da magistrada", pelo que pede a sua substituição.
O advogado justifica a medida, que pretende o afastamento da juíza Maria da Conceição Miranda, considerando gravíssimo que a magistrada tenha dito que "como é sabido, quem se dedica a este tipo de práticas criminosas (o aborto) fá-lo por regra como modo de vida e com fins lucrativos". Uma afirmação que, para a defesa, "revela um pré-juízo contra a arguida" sendo, portanto, "impeditivo de um julgamento imparcial".
Se a moda pegar, está encontrada a fórmula de evitar um julgamento que se não deseje, a não ser com um juiz escolhido previamente a seu contento pelo próprio arguido: recusa-se, ad infinitum, cada juiz que resulte da distribuição dos processos... até queimar o tempo necessário, ou encontrar um juiz que dê garantias de pensar do modo que se pretende.
Quanto aos juízes, o único direito que lhes fica é o de permanecerem em silêncio... tudo o que disserem poderá ser usado contra eles, e a recusa pode vir de qualquer dos lados.
Não estou a ver como é que os nossos legisladores irão descansar esta bota: quem for levado a julgamento já sabe - o juiz não agrada, recusa-se. Se for preciso dar verosimilhança à alegada parcialidade, pode com toda a facilidade criar-se uma situação que a demonstre (num instante pode requerer-se algo que já se sabe não pode ser atendido, e venha de lá o indeferimento, aí está feita a prova da parcialidade: depois, recusa-se o julgador, obviamente).
Se isto se generalizar, poucos julgamentos poderão realizar-se. Repare-se que as frases citadas acima não contêm nenhum juízo sobre a arguida em causa (nada indica que a juiza a conheça, de modo a ter alguma simpatia ou antipatia, alguma amizade ou inimizade, alguma ideia feita, boa ou má. Se assim fosse a própria juiz se declararia impedida). Na realidade são palavras que exprimem apenas considerações gerais sobre o que é de regra na prática dos crimes de aborto.
Se Marc Dutroux pudesse ter recusado o juiz por duvidar da sua imparcialidade, apenas com base em considerações genéricas sobre os crimes de pedofilia, certamente não estaria agora condenado. Nem certamente o Al Capone teria sido condenado por crimes fiscais, se pudesse recusar o juiz que tivesse afirmado que quem foge ao fisco o faz em regra para alcançar vantagem patrimonial ilícita em prejuízo do Estado. Mas evidentemente não puderam lançar mão desse recurso.
Lembro que aqui não há muito tempo o nosso amado Presidente discursava solenemente sobre os "excessos de garantismo" (expressão dele) que afectavam a justiça penal em Portugal, contribuindo para a perpetuação de situações de ineficácia, sobretudo quando em face de pessoas que podem recorrer a todos os estratagemas que a lei generosamente lhes faculta de modo a imobilizar os tribunais.
Entretanto o amado Presidente mudou de opinião, por coincidência na altura dos azares do afilhado Pedroso. Eu compreendo, que a ineficácia até é um bem precioso quanto o mal toca de perto, e não faltarão maldosos a comentar até que ela é mesmo uma salvaguarda essencial para o equilíbrio do sistema político vigente.
Mas lá que é verdade que o tal "excesso de garantismo" existe e conduz a ridículos atrozes, lá isso é verdade.