domingo, julho 18, 2004

Do Rodrigo e da Pintasilgo

Em tempos, estava o governo da nação sob a asa maternal da Mademoiselle Pintasilgo...
Juro que não quero faltar ao respeito à senhora, recentemente desaparecida, e que sempre recordarei com “o seu petit sourire de holandesa gorda”, para usar a caracterização divertida do Orlando Vitorino. Nem irei falar dos seus tiques de “peixinho vermelho em pia de água benta”, para lembrar o dichote inspirado desse passarão que foi o Prof. Salazar.
Fui forçado a recordá-la por ter deparado com uma velha crónica do Rodrigo Emílio (como vêem ainda não mencionei ninguém que não tenha já partido desta vida), desse tempo em que ele publicava as suas “crónicas satânicas”. Mais uma das “bagatelas para um massacre” em que o seu formidável talento se comprazia, torrencial no sarcasmo e no humor corrosivo.
Ora leiam a entrevista imaginária, com pergunta e resposta como é de regra.
  
 
ENTREVISTA IMAGINÁRIA
 
Indo eu levar alpista
a uma ave que eu cá sei,
tropecei num jornalista
e uma entrevista lhe dei.

 
Esta:
 
P. ‑ Podemos, ou não, chegar à fala?
R. ‑ Bem sabe que, com o advento da Pintassilgo, voltámos ao tempo em que os animais falavam. Por isso, fale.
P. ‑ Sendo assim, fará a fineza de me dizer onde é que estava e o que fazia, aqui há dez anos?...
R. ‑ Estava em Nampula e passeava‑me por avenidas e avenidas de acácias.
P. ‑ E hoje?
R. ‑ Hoje em dia, estou em Lisboa e passeio‑me por avenidas e avenidas de Acácios.
P. ‑ Que eu saiba, nunca foi outra a paisagem humana desta terra... Já assim era, por exemplo, na infância da Re­pública.
R. ‑ Só que nesse tempo, ainda Sá‑Carneiro era nome de poeta. Não era, como agora, o nome de um “pulhítico”...
P. ‑ Por onde mais tem andado, neste meio‑tempo?
R. ‑ Se quer que lhe diga, principalmente por Espanha.
P. ‑ E aquilo por lá, que tal vai indo?...
R. ‑ Quase tão mal como aqui. Situações, no fundo, bastante parecidas, sabe o senhor?!
P. ‑ Não me diga outra!!...
R. ‑ É o que lhe digo: nós, à pega  com “os Vascos”; eles, à nora com “os bascos”.
P. ‑ Então, e a Falange?... Que é feito da chamada Falange “de apoio”?...
R. ‑ Desmembrou‑se em Falange, falangina e falangeta, calcule só!
P. ‑ Mudando de assunto, diga‑me cá: que vida leva?
R. ‑ Vida literária. Que me lembre, nunca tive outra; e assim como assim, agora também já não quero outra vida...
P. ‑ Quando recebeu “ordens” de escritor?
R. ‑ Saiba o meu caro senhor que eu nunca recebi ordens de ninguém.
P. ‑ A sua divisa?
R. – “Poésie d’abord”.
P. ‑ Considera‑se um poeta “engagé”?
R. ‑ Considero‑me, sobretudo, um poeta “engageant”.
P. ‑ É curioso que a esquerda também está cheia de poetas “comprometidos”...

R. ‑ Engana‑se. A esquerda está cheia de poetas “comprometedores”.
P. ‑ Que diferença existe, no seu entender, entre um poeta de direita e um poeta de esquerda?
R. ‑ A mesma que existe entre um poeta “cósmico” e um poeta “cómico”.
P. ‑ E em matéria de bagagem cultural, qual é, a seu ver, a distância que vai de um homem de direita a um homem de esquerda?
R. ‑ É a mesma que vai do grand Littré ao petit Larrousse, meu caro senhor.
P. ‑ Que pensa da Catarina Eufémía?
R. ‑ Penso que é o cúmulo do eufemismo.
P. ‑ Sabe que passa por ser uma caneta endiabrada?...
R. ‑ Dizem que sim.
P. ‑Afinal, porquê?
R. ‑ Olhe: primeiro que tudo, porque me dou ao luxo de não ter “apoderados”, o que desde logo significa que não sou uma caneta  “de vida fácil” ...  E depois, também, porque não sou artigo “de utilidade pública".
P. ‑ Ai não?!...
R. ‑ Não. E já agora, em vista disso, passe vocência me­lhor do que merece, só para não dizer que passe o pior possível!... De jornalistas estou eu fartinho até aqui. Perce­beu? Até aqui!
(Socorri‑me das pontas do cabelo, e desandei).