A Escola e o Hino
No "Público" de 7 de Julho foi publicado um artigo de opinião do Prof. Manuel Antunes, conhecido catedrático da Universidade de Coimbra. Pela relevância indiscutível da sua personalidade e pela projecção das suas posições cívicas, aqui fica, na íntegra, o artigo mencionado.
"A Escola e o Hino
A propósito da intenção do governo de instituir exames nacionais para os alunos no último ano do ensino básico, intenção que desencadeou as reacções das mais diversas, ouvi o responsável máximo de uma associação de pais, em tom depreciativo, perguntar, mais ou menos nestes termos, "e porque não também o hino nacional e a formatura à entrada da escola?"
Não sei se aquele senhor é representativo do pensar da maioria dos pais portugueses. Sinceramente espero que não. Certamente não me representa a mim. Escrevo estas linhas como professor, marido de uma professora mas, sobretudo, como pai de três filhos, um ainda na escola. Vi estes meus três filhos passar por várias reformas curriculares. Inclusivamente, tive a experiência de dois deles terem frequentado parte do ensino oficial num país estrangeiro, pelo que penso estar em condições de fazer comparações directas.
Tenho assistido, com grande desgosto e algum grau de desespero, a uma "liberalização" cada vez maior do ensino que, a meu ver, nada tem contribuído para melhorar a formação dos nossos jovens. Com apreensão, tenho visto desaparecer do currículo escolar disciplinas orientadas para a formação cívica, moral e religiosa por cuja falta tenho a certeza viremos a pagar muitíssimo caro no futuro.
Sou do tempo em que a actividade escolar era mesmo começada a cantar o Hino Nacional e em que a entrada para a sala de aulas era feita em formação ordenada. Estes dois tipos de prática são para mim simbólicos apenas porque representavam a disciplina e o respeito pelos valores sociais que hoje tanta falta fazem nas nossas escolas, e que é também, em minha opinião, uma das principais causas do nosso atraso cultural. Penso que a nova ordem democrática, que levou ao abandono destas e de outras práticas, não serve afinal a democracia que se baseia em cidadãos bem formados, conscientes dos seus deveres cívicos.
Nalguns países europeus muito mais avançados do que o nosso, exemplos de grandes democracias, continuam a ser prática corrente. O ensino britânico ainda hoje não dispensa o uniforme escolar que não é sinónimo de falta de liberdade mas, ao contrário, fomenta a igualdade. Os nossos melhores colégios privados também fazem uso dele. Por contraste, sabe-se bem como são desprezados pelos colegas os meninos que nas nossas escolas públicas não usam roupa de marca, que se tornou um dos principais símbolos do "ser bem".
Independentemente destas considerações, faz-me aflição ver que a maior parte dos nossos jovens não sabe a letra completa do nosso Hino Nacional, facto aliás bem patente quando olhamos pela televisão para o balbuciar de alguns dos nossos jogadores de futebol durante os jogos da selecção, ao contrário daquilo que vemos na maior parte dos nossos adversários. Há dias, quando o Euro já se iniciara, uma das nossas televisões fez um inquérito de rua e não conseguiu encontrar um só cidadão (?) que soubesse a letra completa da "Portuguesa". Tenho quase a certeza de que a maior parte sabia os nomes de todas as personagens e dos actores das muitas telenovelas que ela passa diariamente.
Em qualquer país civilizado, o Hino Nacional, tal como a bandeira, é um símbolo máximo da cidadania. No nosso caso, a sua ausência simboliza também a nossa falta de cultura cívica. Os nossos jovens têm, desde pequeninos, de aprender que a liberdade não significa apenas fazer aquilo que a cada um apetece. O País, a sociedade, têm que estar acima dos valores individuais. Nos Estados Unidos, na Inglaterra e mesmo na Alemanha o culto pelos símbolos nacionais (não nacionalistas) é demonstrado pela bandeira exibida na porta principal da grande maioria das casas. Até na vizinha Espanha esse culto é bem visível.
Mas o nosso sistema escolar assimilou o culto do facilitismo, bem caracterizado pela eliminação de provas de avaliação (exames) periódicas, de carácter nacional, que, ao contrário do que defendem os pedagogos da "nouvelle vague", é causa de (e não solução para) graves assimetrias. O mesmo pode dizer-se da quase exigência de passar os meninos para o ano seguinte para que as taxas de sucesso sejam (artificialmente) melhoradas. Abandonou-se, ostensivamente, a cultura da excelência em favor da mediania, isto é, optou-se pelo nivelamento por baixo. Fazem falta os quadros de honra e os prémios anuais. Enquanto outros se orgulham das suas elites, nós autoconfortamo-nos com o nivelamento cinzento pseudo-democrático. A autoridade deu o lugar ao deixa andar que é tido como o símbolo da afirmação da identidade pessoal e que, não infrequentemente, degenera na indisciplina que, infelizmente, nos parece estar no sangue.
Não existe no nosso curriculum escolar nenhuma disciplina orientada especialmente para o ensino dos valores cívicos, sociais e políticos e a maior parte dos nossos jovens demonstra uma profunda ignorância destes aspectos fundamentais da cultura de cidadania. Não pretendo fazer aqui a apologia da re-introdução do Hino nas escolas, mas a declaração feita por aquele responsável da organização de pais é demonstradora do muito que temos a percorrer na formação do nosso povo. E é aqui que temos que apostar se quisermos vencer a batalha do desenvolvimento. A União Europeia foi agora enriquecida com a entrada de dez novos países do Leste Europeu. Independentemente do seu passado político recente, ou até por isso, é sabido que as suas populações têm um índice cultural e de instrução geralmente bastante mais elevadas que o nosso, o que apenas pode contribuir para que nos afundemos cada vez mais na nossa posição já desprivilegiada no contexto do grupo das nações.
A restauração, desde o ensino básico, de uma escola cada vez mais consciente do seu papel fundamental na formação cívica dos cidadãos, tanto quanto no ensino das ciências ou das letras, é a reforma de que mais urgentemente necessitamos. Conhecedor do ambiente, sempre fui bastante critico da atitude dos professores que há muito parecem querer demitir-se desta responsabilidade. Ouvir um pai falar daquele modo fez-me reconhecer o meu erro. Nós, os pais, somos, afinal, os principais responsáveis. Não podemos transferir para os professores as nossas obrigações específicas.
E por isso, temos que nos reeducar também a nós próprios."
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