Evocação de Panait Istrati
Como tinha prometido, cá está o artigo que Vintila Horia, o autor da “Introdução à Literatura do Século XX”, e farol seguro nessas matérias, escreveu sobre o seu conterrâneo Panait Istrati, há quase 25 anos.
Pelo caminho acaba também por mencionar os casos literários do norueguês Knut Hamsun e de John dos Passos, o mais açoreano dos grandes escritores americanos, que Vintila tinha em grande conta, como é patente na citada “Introdução”.
Lembro com saudade o próprio Vintila, que esteve entre nós na época quente do pós-revolução e, mesmo em Madrid, onde vivia, nunca regateou a sua atenção, auxílio e colaboração a quem o procurava.
A DUPLA MORTE DE PANAIT ISTRATI
Num dia de Janeiro de 1921, num jardim público de Nice, um fotógrafo ambulante golpeou a garganta, perante o público que se passeava ao sol mediterrâneo. Salvou‑se, depois de dura e demorada luta com a morte, mas os médicos tiraram‑no do hospital antes de se restabelecer, por uma enfermeira haver encontrado num bolso do seu casaco uma carta dirigida ao jornal comunista “L'Humanité”, saudando a revolução como o nascimento de um mundo novo e de uma nova esperança. O vagabundo voltou às suas deambulações, mas agora com uma nova razão para viver: tinha recebido uma carta do escritor Romain Rolland, que o incitava a abandonar o género epistolar para se dedicar a escrever livros. E Panait Istrati, protegido e ajudado agora por um compatriota de Paris, o sapateiro lonescu, escreve “Kira Kiralina”, a história de uma prostituta que, ao entregar‑se aos homens, cumpre dessa forma o seu dever para com Deus.
O livro publicou‑se em 1924 e foi um dos maiores êxitos do século. O vagabundo e autodidacta Panait Istrati, nascido no porto romeno de Braila, em 1884, tornou‑se célebre e rico de um dia para o outro. Fartos da literatura falsa e rebuscada dos anos vinte, os leitores admiraram no novo escritor o poder da sua inspiração e o colorido do seu mundo danubiano, semi‑oriental, povoado de estranhas personagens, pecadores e santos ao mesmo tempo, movidos por paixões às vezes primitivas e às vezes sublimes.
Três anos depois (entretanto havia publicado “O Tio Ângelo” e “A Vida de Adriano Zograti”) Istrati é convidado a visitar Moscovo, onde conhecerá a grande desilusão. Em primeiro lugar ‑ conforme o conta Nikos Kazantsakis no seu livro de memórias intitulado “Do Monte Sinai à Ilha de Vénus” (Paris, 1958 ) - por encontrar no ídolo da sua juventude, Máximo Gorki, uma espécie de funcionário do novo estado soviético, frio e indiferente; em segundo lugar, por encontrar uma Rússia em nada parecida à dos seus sonhos e ilusões. Percorreu‑a de uma ponta a outra e, de regresso a Paris, escreveu “A Rússia a Nu” (1929). que foi outro êxito e o começo de novos sofrimentos. Caiu‑lhe em cima toda a Imprensa de esquerda, os seus amigos abandonaram‑no, a perseguição contra ele tomou formas inauditas de crueldade e de cobardia. Era a época da íntima e gozosa colaboração entre os grandes intelectuais europeus e o comunismo. Louis Aragon podia ser então, ao mesmo tempo, surrealista e admirador do realismo socialista, homem livre e membro do partido. Ninguém queria saber dos campos de concentração, dos assassínios em massa, da fome ou das façanhas quotidianas da policia política. Panait Istrait foi um dos primeiros escritores capazes de dizer a verdade sobre o monstro que acabava de nascer, semelhante ao engendrado pela doutor Frankenstein, mas que os ocidentais confundiam com Apolo e Adonis.
Doente de tuberculose, abandonado, pobre, autor já de muitos livros, Istrati decidiu voltar ao seu país. Regressa pois à Roménia, onde dedicará os seus últimos anos de vida a colaborar num semanário da extrema‑direita. Em 1935 morre num hospital de Bucareste, rodeado de jovens amigos e colaboradores que o acompanharam ao cemitério, homem puro, que se havia enganado muito, mas que também havia amado muito, semelhante às suas personagens e, sobretudo, àquele “Adriano Zograti”, que é o seu “alter ego”.
A sua vida e a sua obra não deixam de ser modelares neste momento, quando o desengano começa a corroer a boa consciência dos intelectuais ocidentais, testemunhas oculares do processo comunista e da sua evolução, mas cegos, todavia, até hoje, perante aquela tremenda injustiça. lstrati deu‑se conta dela logo no seu primeiro encontro com a Rússia. Não possuía muita cultura, e, tal como o seu contemporâneo Knut Hamsun ‑ ex‑comunista arrependido, transformado em inimigo visceral do sistema soviético igualmente depois da sua primeira visita à Rússia ‑também o autor de “Kira Kyralina” nunca soube mentir.
Defensor do homem numa época em que se fala dos direitos humanos, mas já ninguém os sabe defender a não ser na tribuna dos congressos e nas reuniões de juristas, enquanto os governos os ignoram na maior parte da geografia universal, Istrati descobriu aos seus leitores o mundo do homem vencido, humilhado e agredido pelos poderosos, do homem fiei à sua humanidade.
As suas personagens são gente humilde, enferma de paixões, mas disposta sempre a estender a mão e a compreender. A sua poesia em prosa é, por vezes, comovedora. A cena de “Os Cardos de Baragan” (Novelas e Contos‑ Madrid, 1973) quando o menino foge de casa e corre ao longo da planura do Baragan, juntamente com os cardos que o vento leva, é de uma grande beleza simbólica: pois tem a latejar em si o eterno mito da aventura humana, a correlação neo‑romântica que o leitor logo estabelece entre o puro furor da natureza e o impulso vital que leva a criança a participar naquela tormenta.
O caso Istrati é sumamente interessante e instrutivo, do ponto de vista político e do literário. Ele não foi o único vagabundo autodidacta capaz de dar uma tal volta. O autor de “Fome”, Prémio Nobel, atormentado por passado muito parecido ao de Istrati, é igualmente característico. Knut Hamsun foi defensor do marxismo na sua juventude e passou para o outro lado quando tomou contacto com a encarnação visível dos seus sonhos. No seu ódio, chegou a aceitar os nazis durante a segunda guerra mundial, para depois acabar por ser perseguido pelos seus, humilhado e torturado psiquicamente, tal como em novo havia sido torturado pela fome. Mas John dos Passos terá sido, porventura, o esquerdista mais violentamente direitista da história das Letras deste século. Socialista ao longo das suas novelas mais conhecidas, tornou‑se fanaticamente da Direita depois dos sessenta anos e morreu isolado, incompreendido e boicotado, sobretudo pelos ambientes universitários dominados então (Dos Passos morreu em 1970) pelo clã dos marxistas de salão. Todavia, ninguém, nenhum escritor do nosso século, conheceu tanto a dor, o desengano, o desejo de abandonar a vida, o êxito e a perseguição como o romeno universal que foi Panait Istrati. Ter morrido duas vezes parece pouco para um homem assim. Significa, no fundo, não morrer nunca. Que é, afinal, o destino dos grandes forjadores de mitos, aliados dos homens.
VINTILA HORIA
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