OS NÃO-NOBEL
Resolvi oferecer aos leitores mais um artigo de Vintila Horia, este motivado pela notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a um misterioso grego de que nunca se ouvira falar, e que continua hoje tão obscuro e ignoto como na época em que o artigo foi escrito.
Era mais uma demonstração do que Jorge Luís Borges dizia ser a opção da Academia Sueca, a de descobrir talentos desconhecidos.
Como se constata no artigo, Vintila Horia sugeria a atribuição do Prémio aos três escritores então vivos que se lhe apresentavam como os mais merecedores da distinção. Não teve sorte nenhuma na sugestão, porque qualquer dos três veio a desaparecer de entre os vivos sem que a veneranda academia se lembrasse deles.
E a tendência persistiu e agravou-se, continuando a ser premiados por sistema autores em que não é possível descortinar qualquer razão (de ordem literária) para a distinção. Vintila Horia, morreu entretanto - já não conheceu o saramago...
Os não-Nobel da Literatura: Jünger, Borges, Greene
Permito‑me sugerir à Real Academia Sueca estes três nomes ‑ os nomes de Jünger, de Borges e de Greene ‑ permito‑me tirá‑los do olvido em que os deixou a ilustre academia no momento em que ela, mais uma vez, outorga o mais importante prémio literário do Mundo a escritores desprovidos de qualquer importância.
Com efeito, quem é o chamado Poliester, ou Pompílio, ou Pomposideo, que acaba de ser coroado como o melhor entre os melhores? Que é que ele escreveu? Dizem os jornais que alguns versinhos de poesia surrealista, da que devia escrever há quarenta ou cinquenta anos, e que exerce em Atenas o mister de industrial e que tem ideias da esquerda. São estes os únicos dados concretos sobre um homem de cuja obra literária ninguém sabe nada.
O simples facto de ser da esquerda (comunista, imagino eu) na vida política e surrealista na vida poética, dá‑nos conta da mediocridade da personagem. Se isto é assim, se a imprensa não meteu uma vez mais o pé na argola ‑ mas eu utilizo os únicos dados que tenho sobre essa ilustre personagem ‑ a própria circunstância de querer ser ao mesmo tempo surrealista e comunista implica uma contradição absoluta. Porque um poeta surrealista não pode ser comunista, já que vive princípios fora de qualquer tipo de realismo. Colocou‑se à margem do real, do real como o consideram os falsos realistas do materialismo dialéctico. Teria que pôr nos seus livros o realismo socialista, que é a única doutrina consentida a marxistas. Mas ser comunista, ou socialista ‑ quer dizer, ter a marca do marxismo ‑ e ao mesmo tempo ser um surrealista mostra bem a espécie a que pertence o galardoado.
Além disso, a que classe de capitalismo industrial poderá pertencer um “homem da esquerda”? Será que, na melhor das hipóteses, ganha muitos dólares para os distribuir pelos pobres, depois de os chamar para junto de si e de lhes ler uma poesia surrealista?
Ora a Real Academia da Suécia vive a brincar com a literatura, proclamando vencedores anualmente nestes jogos olímpicos do espírito uns pobres vencidos, e esquecendo alguns escritores de real actualidade, não só por os seus livros se venderem mais do que os de Pompossideo como também por se encontrarem do lado em que se defende o que periga de essencial no ser humano.
Não me refiro a novelistas que fazem parte das minhas preferências pessoais, mas sim a homens que estão fundamente ancorados nas preocupações deste século e presentes no drama do homem. Ernst Jünger é o maior prosador europeu vivo. As sua novelas, como “Heliopolis” ou “As Abelhas de Cristal”, traduzidas em muitas línguas, contribuíram para formar um tipo de homem voltado para o imperecível, até à defesa desesperada da Eternidade. Nos seus ensaios, tão famosos e tão lidos como as suas novelas ‑ refiro‑me a “0 Rebelde”, “0 Trabalhador”, “0 Muro do Tempo” e a muitos mais ‑ Jünger colocou o problema da técnica como instrumento da planetarização do Ocidente e teve directa influência sobre Heidegger. É um dos espíritos mais cultos, mais inteligentes e mais literários da actualidade, este homem que soube inserir o escritor na imagem integral do homem e do mundo. Os seus “Diários” dão‑nos conta das suas preocupações científicas. É através de um homem assim e de uma literatura capaz de o abarcar por completo que temos possibilidade de compreender os nossos terríveis problemas e talvez de os resolver. Todavia, Jünger não interessa aos académicos de Estocolmo. Tê‑lo‑ão lido? Terão ouvido falar dele? Duvido ‑ porque o facto de terem dado o seu prémio a um gato surrealista, lido por quatro gatas e de todo em todo ausente da literatura contemporânea, parece‑me revelador de uma profunda ignorância.
Quanto a Borges, para quê citá‑lo aqui? Já toda a gente se inteirou do que propõem os seus contos. É, porventura, o mais hábil contista de todos os tempos ‑ direi mesmo mais hábil do que Bocaccio ou Guy de Maupassant. 0 seu “Evangelho segundo Marcos” é talvez a obra‑prima do género, tal como “Aleph”. Dizem‑no da Direita, como Jünger. Mas que significa hoje ser da Direita? Não está ele mais próximo dos ideais ‑ pelo menos dos ideais aparentes ‑ da Real Academia Sueca do que a carga anti‑humana patente nos livros dos materialistas dialécticos amantes da utopia gulaguista? Ou será que em Estocolmo se está mais próximo do ideal leninista‑gulaguista do que do ideal humano? Não sei como responder a tal pergunta, que é, de resto, a expressão de uma terrível dúvida.
Graham Greene ‑ autor de “O Poder e a Glória”, a história antitotalitária mais tremenda deste século rico em tremendismo totalitário e em histórias que o desmascaram, de “O Nosso Agente em Havana” e dezenas de outros livros ‑ conseguiu pôr em relevo a miséria da alma humana em todas as latitudes e a grandeza do homem até no próprio fundo dessa mesma miséria, como naquele padre de “O Poder e a Glória”, mulherengo e bêbedo, que no final do livro escolhe o martírio, só porque alguém ‑ talvez ninguém ‑ o esperava do outro lado da fronteira para se confessar. É um livro belo e inesquecível ‑ o inesquecível, nos livros como nas mulheres, representa a marca indelével da qualidade ‑ e uma das coroas de ouro do século XX. Mas Graham Greene é católico...
Cada um dos três grandes acima citados têm, portanto, um “defeitozinho” característico e, por isso, nenhum está na linha dos Pomposideos que os afastam, ano após ano, da concessão do Nobel ‑ prémio esse destinado a galardoar obras cujo fim evidente seja o de nos ajudar a compreender, a viver e a apoiar valores que estão a desfazer‑se pelo seu choque com o que é inumano.
Em que medida se mantém hoje fiel à missão para que foi instituído um prémio tão alto e tão cobiçado e que, pelo nome e pela insignificância daqueles que distingue, está a ser reduzido ao contrário do que deveria ser? Que diria Alfredo Nobel face à espécie de literatura que tem sido premiada ultimamente?
De resto, trata‑se de um prémio apolítico ‑ mas o que é premiado pelos académicos de Estocolmo são méritos políticos, repelindo escritores muito mais conhecidos, repelindo‑os por defeitos políticos, que existem segundo o critério dos académicos mas não segundo o critério dos leitores.
Eu já sabia que neste mundo não há justiça, nem sequer justiça literária. Mas a tal ponto, meu Deus, a tal ponto...
VINTILA HORIA
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