segunda-feira, julho 19, 2004

OS NÃO-NOBEL

Resolvi oferecer aos leitores mais um artigo de Vintila Horia, este motivado pela notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a um misterioso grego de que nunca se ouvira falar, e que continua hoje tão obscuro e ignoto como na época em que o artigo foi escrito.
Era mais uma demonstração do que Jorge Luís Borges dizia ser a opção da Academia Sueca, a de descobrir talentos desconhecidos.
Como se constata no artigo, Vintila Horia sugeria a atribuição do Prémio aos três escritores então vivos que se lhe apresentavam como os mais merecedores da distinção. Não teve sorte nenhuma na sugestão, porque qualquer dos três veio a desaparecer de entre os vivos sem que a veneranda academia se lembrasse deles.
E a tendência persistiu e agravou-se, continuando a ser premiados por sistema autores em que não é possível descortinar qualquer razão (de ordem literária) para a distinção. Vintila Horia, morreu entretanto - já não conheceu o saramago...
 
 
Os não-Nobel da Literatura: Jünger, Borges, Greene

Permito‑me sugerir à Real Academia Sueca estes três no­mes ‑ os nomes de Jünger, de Borges e de Greene ‑ permito­‑me tirá‑los do olvido em que os deixou a ilustre academia no momento em que ela, mais uma vez, outorga o mais impor­tante prémio literário do Mun­do a escritores desprovidos de qualquer importância.
Com efeito, quem é o cha­mado Poliester, ou Pompílio, ou Pomposideo, que acaba de ser coroado como o melhor en­tre os melhores? Que é que ele escreveu? Dizem os jornais que alguns versinhos de poesia surrealista, da que devia escrever há quarenta ou cinquenta anos, e que exerce em Atenas o mis­ter de industrial e que tem ideias da esquerda. São estes os únicos dados concretos sobre um homem de cuja obra literá­ria ninguém sabe nada.
O simples facto de ser da es­querda (comunista, imagino eu) na vida política e surrealis­ta na vida poética, dá‑nos conta da mediocridade da persona­gem. Se isto é assim, se a im­prensa não meteu uma vez mais o pé na argola ‑ mas eu utilizo os únicos dados que tenho so­bre essa ilustre personagem ‑ a própria circunstância de querer ser ao mesmo tempo surrealista e comunista implica uma con­tradição absoluta. Porque um poeta surrealista não pode ser comunista, já que vive princí­pios fora de qualquer tipo de realismo. Colocou‑se à margem do real, do real como o consi­deram os falsos realistas do ma­terialismo dialéctico. Teria que pôr nos seus livros o realismo socialista, que é a única doutrina consentida a marxistas. Mas ser comunista, ou socialista ‑ quer dizer, ter a marca do mar­xismo ‑ e ao mesmo tempo ser um surrealista mostra bem a es­pécie a que pertence o galar­doado.
Além disso, a que classe de capitalismo industrial poderá pertencer um “homem da esquerda”? Será que, na melhor ­das hipóteses, ganha muitos dólares para os distribuir pelos pobres, depois de os chamar para junto de si e de lhes ler uma poesia surrealista?
Ora a Real Academia da Suécia vive a brincar com a lite­ratura, proclamando vencedo­res anualmente nestes jogos olímpicos do espírito uns po­bres vencidos, e esquecendo al­guns escritores de real actualidade, não só por os seus livros se venderem mais do que os de Pompossideo como também por se encontrarem do lado em que se defende o que periga de essencial no ser humano.
Não me refiro a novelistas que fazem parte das minhas preferências pessoais, mas sim a homens que estão fundamente ancorados nas preocupações deste século e presentes no drama do homem. Ernst Jünger é o maior prosador europeu vivo. As sua novelas, como “Helio­polis” ou “As Abelhas de Cris­tal”, traduzidas em muitas lín­guas, contribuíram para formar um tipo de homem voltado pa­ra o imperecível, até à defesa desesperada da Eternidade. Nos seus ensaios, tão famosos e tão lidos como as suas novelas ‑ refiro‑me a “0 Rebelde”, “0 Trabalhador”, “0 Muro do Tempo” e a muitos mais ‑ Jünger colocou o problema da técnica como instrumento da planetarização do Ocidente e teve directa influência sobre Heidegger. É um dos espíritos mais cultos, mais inteligentes e mais literários da actualidade, este homem que soube inserir o escritor na imagem integral do homem e do mundo. Os seus “Diários” dão‑nos conta das suas preocupações científicas. É através de um homem assim e de uma literatura capaz de o abarcar por completo que te­mos possibilidade de compreender os nossos terríveis problemas e talvez de os resolver. Todavia, Jünger não inte­ressa aos académicos de Esto­colmo. Tê‑lo‑ão lido? Terão ouvido falar dele? Duvido ‑ porque o facto de terem dado o seu prémio a um gato surrea­lista, lido por quatro gatas e de todo em todo ausente da litera­tura contemporânea, parece‑me revelador de uma profunda ig­norância.
Quanto a Borges, para quê citá‑lo aqui? Já toda a gente se inteirou do que propõem os seus contos. É, porventura, o mais hábil contista de todos os tempos ‑ direi mesmo mais há­bil do que Bocaccio ou Guy de Maupassant. 0 seu “Evangelho segundo Marcos” é talvez a obra‑prima do género, tal como “Aleph”. Dizem‑no da Direita, como Jünger. Mas que significa hoje ser da Direita? Não está ele mais próximo dos ideais ‑ pelo menos dos ideais aparentes ‑ da Real Academia Sueca do que a carga anti‑humana patente nos livros dos materialistas dialécticos amantes da uto­pia gulaguista? Ou será que em Estocolmo se está mais próximo do ideal leninista‑gulaguista do que do ideal humano? Não sei como responder a tal per­gunta, que é, de resto, a expres­são de uma terrível dúvida.
Graham Greene ‑ autor de “O Poder e a Glória”, a história antitotalitária mais tremenda deste século rico em tremendis­mo totalitário e em histórias que o  desmascaram, de “O Nosso Agente em Havana” e dezenas de outros livros ‑ con­seguiu pôr em relevo a miséria da alma humana em todas as latitudes e a grandeza do homem até no próprio fundo des­sa mesma miséria, como naque­le padre de “O Poder e a Gló­ria”, mulherengo e bêbedo, que no final do livro escolhe o mar­tírio, só porque alguém ‑ tal­vez ninguém ‑ o esperava do outro lado da fronteira para se confessar. É um livro belo e inesquecível ‑ o inesquecível, nos livros como nas mulheres, representa a marca indelével da qualidade ‑ e uma das coroas de ouro do século XX. Mas Graham Greene é católico...
Cada um dos três grandes acima citados têm, portanto, um “defeitozinho” característi­co e, por isso, nenhum está na linha dos Pomposideos que os afastam, ano após ano, da con­cessão do Nobel ‑ prémio esse destinado a galardoar obras cu­jo fim evidente seja o de nos ajudar a compreender, a viver e a apoiar valores que estão a desfazer‑se pelo seu choque com o que é inumano.
Em que medida se mantém hoje fiel à missão para que foi instituído um prémio tão alto e tão cobiçado e que, pelo nome e pela insignificância daqueles que distingue, está a ser reduzido ao contrário do que deveria ser? Que diria Alfredo Nobel face à espécie de literatura que tem sido premiada ultimamen­te?
De resto, trata‑se de um pré­mio apolítico ‑ mas o que é premiado pelos académicos de Estocolmo são méritos políti­cos, repelindo escritores muito mais conhecidos, repelindo‑os por defeitos políticos, que exis­tem segundo o critério dos aca­démicos mas não segundo o critério dos leitores.
Eu já sabia que neste mundo não há justiça, nem sequer jus­tiça literária. Mas a tal ponto, meu Deus, a tal ponto...
VINTILA HORIA