sexta-feira, agosto 27, 2004

0 ESPÍRITO de POUPANÇA

Há anos, em Guimarães, conhecemos um pobre carregador, bom gigante que era gago e não regulava muito bem do juízo. Carreava o sal e as mercearias para diversas casas e assim angariava o sustento e o preço do tabaquito. 0 nosso conhecimento liga-se precisamente ao tabaco, pois embora eu não fumasse, munia-me de alguns maços para lhos oferecer e assim entrar na filosofia do homem que não era desaparafusada de todo. Um dia, vi-o chegar ao pé de mim e notei que trazia dois relógios, um em cada pulso! - Ó Manuel, então tu trazes dois relógios? Para que foste gastar dinheiro à toa? - É que dou corda neste de manhã, e, no deste lado, à noite. E quando um pára o outro lá segue! Quero crer que, na sociedade em que vivemos, que alguns chamam da abundância, outros do consumo, não são raros os que procedem como esse meu amigo sem lhe adoptarem a filosofia que ainda tinha lá no fundo um luaceiro de razão a justificá-la. Há por aí muita gente com os dois relógios... Mas os tempos vão maus e intimam ao homem que adopte um espírito de poupança e saiba viver com o pouco que bastou aos grandes sages que balizaram os séculos. No nosso tempo houve aí um filósofo, Marcuse, que doestou a sociedade metida nos trilhos de produção desenfreada a toque de necessidades estandardizadas. Mas fê-lo em nome de uma filosofia igualmente materialista e em nome do princípio de prazer avançado por Freud. Não é por aí que nos vem o remédio. Muito melhor viu a coisa um filósofo que tem honrado as nossas páginas, Gustave Thibon, o qual escreveu um lúcido ensaio sobre o espírito de poupança. Quem tem contacto com a terra e com o ritmo de produtividade que a caracteriza sabe adaptar-se aos gastos, zelar o que custa muito suor, afastar-se do desmazelo que é sempre prova de desamor. A abundância acompanhada de autodomínio, a abundância regulada e usada com mesura é altamente favorecedora do homem; a abundância a que o homem se sujeita é como uma aluvião que desaba e afunda o mesmo homem num mar tredo de facilidades, mar emoliente que elide a fibra resistente e batalhante e nos deixa à mercê de qualquer zagalotada de inimigo escarnicoso. Quando os senhores ministros nos vêm dizer que é preciso apertar o cinto e nos entregam um "cabaz" sucinto e rodeado de leis, todos nos lembramos das vacas magras do Egipto faraónico e fazemos cara feia ao tempo que aí vem. Mas também é certo que nem os senhores ministros são capazes, em certas ocasiões, de afastar o gado emagrecido e trazer à soga o vaquedo gordo para os nossos lameiros. Mandam-nos invocar o espírito de poupança e eles mesmos pegam de andar a pé para não gastar gasolina, viajam menos de avião, sujeitando-se em tudo às normas do comum. E começam a perceber que o uso moderado das coisas que é precisamente, segundo o irrefragável dicionário de Morais, o espíto de poupança, é meio muito mais idóneo para robustecer a economia de uma nação do que voejar, dia por dia, para os países de Leste, donde regressaram com a escudela vazia! Esse uso moderado das coisas dá ansa a que o homem as aprecie, as estime no seu justo valor, crie relações com elas que, a um tempo, o aperfeiçoam moralmente e lhe deixam a inteligência espevitada para descobrir aptidões e finalidades às sóbrias coisas que vêm ter com ele por caminho sóbrio, custoso, original. Já a velha Grécia entendeu, pelos seus homens de proa, que o ideal humano não sobrepaira os povos fartos porque os adormenta em torno de viandas gratuitas. E se hoje vemos pelas Américas opulentas bons exemplares humanos de mesura e de ascese é que o espírito de poupança pode e deve florescer mesmo nas abundâncias e é mesmo aí que se mostra mais virtuoso. Quando o espírito de poupança se volve forçoso, é caso para perguntar como se vivia, antes que a primeira vaca magra anunciativa destes tempos entrou no lameiro. Quem eram os perdulários? Quem os semeadores de cobiças e de necessidades supérfluas? Quem os esbanjadores dos dinheiros públicos? No meio deste exame, lembramo-nos do macaco que possuía certo avarento. Como este adormecesse, o bicho foi-lhe ao cofre, sobraçou maços de notas e veio entorná-las da janela abaixo para os passantes que não pararam a vê-las cair mas as foram encarteirando, pela mansa. Estas histórias de mestre Esopo, ou doutro por ele, têm aplicação periódica a nível colectivo e é sempre de temer que as nações alberguem desses bichos nos seus adentros. Fica porém, a claro, que o espírito de poupança deve vigorar em todo o tempo. É uma espécie de espírito clássico do domínio da economia, assim como o abanjamento é de feitio romântico e castiga com dura côdea quem se lhe entrega. Vamos então ser clássicos a duras penas? É o que parece, a julgar pelos preços altos. E o Manuel, bom gigante de Guimarães, continuará com os dois relógios, um em cada pulso, com o fito de, se um parar, o outro lá seguir, porque o que importa é trazer horas certas...
João Maia